quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Herança errada


A cortina aberta para o céu da noite revela o quanto os outros são somente os outros quando estão do outro lado da rua. Silêncio imaturo de mais um cigarro tragado, que traz perfume de outra estação. Depois que ficou sozinha, não precisou mais pedir licença.
Escreve suas antiquadas cartas, que sempre acabam rasuradas. Pés acelerados, trombam um no outro, mãos exageradas de marcas de caneta, respiração ardil, sinfonia banal de uma exagerada aceite na carta de recomendação. Que os urubus decorem seus passeios aéreos e não tragam barulho para as costas cansadas de tanto sentir o peso de pensamentos eloqüentes dos últimos dias. A falta de controle de suas ações, a fez pegar comprimidos, que estavam estacionados sobre uma pequena mesinha de canto, coberta por uma toalha vermelha, com as bordas bordadas em branco. Comprimidos que a permitiram a esticar o braço e pegar o telefone, a ligação era breve, apenas um sinal, que estava tudo bem. Deitou-se no sofá, levantou a perna esquerda, desfez a cara apressada.

Após tentativas mal sucedidas, resolveu voltar para seus fantasmas mais inglórios. A composição química dos comprimidos, já fora devorada com tanto vontade, que poderia fazer um atestado de todas as formulas da vida naquele momento da noite.
Os fantasmas são merecimentos dos restos de todas as chances que a vida apresentou, mas a sonolência dos sentimentos não permitiu.
A todo o momento sobra herança de alguma coisa, nada nasce e morre sem deixar uma herança, é certo, que algumas heranças não deveriam perpetuar, assim, os momentos seriam mais fáceis.

Voltou a sua carta de recomendação, pinçou e logo saíram uma meia dúzia de palavras, que não tinham em nada o tom amargurado da noite, nelas existiam um acre sabor doce, que as palavras salvam o mundo, e neste sentido a herança da noite era boa. Na falta de uma palavra, pegou o dicionário, dentro encontrou uma fantasma amassado, não inventou desculpa, e nem tentou justificar como fosse uma mensagem subliminar.
As suas heranças são merecedoras de seus próprios desejos, que sempre tentam conformar a solidão com apertos de mão. A misericórdia alheia nem mais assusta, pois já sente o quanto é mais saboroso guardar seus fantasmas dentro de seu apartamento.
Um trago a mais no seu cigarro abençoado e uma justificativa em olhar aquele vazio do seu apartamento e perceber que tudo tem sentido definido e, talvez os momentos silenciados nas palavras, sejam o único lugar ideal onde se imagine existir.

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