sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A última quimera

Na última quimera do ano, lambeu os beiços, escondendo a pose da esposa. Aos filhos, sorrisinho de canto de boca. Esse jantar, começou antes dos ponteiros chegaram ao ano novo. Na mesa a família toda, muitos com parentesco distante - inclusive um tio avô do seu padrasto.
Na fé da santinha, herdada da tradição familiar do lado materno, uma oração do Pai Nosso, murmurinhos dos mais velhos, crianças sorrindo e uns tios evocando as passagens de ano na praia.
A tradição de estarem todos juntos é uma condição que não praticaram em viradas de ano anteriores - dessa vez, pediu repeteco na quimera, que poderia vir com um vinho rosé. A família toda não escutou esse pedido, todos preocupados com a chegada de mais um ano.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O primeiro cigarro do dia


Chegar derrubando pela madrugada o único copo que simbolizava a mais ingrata lembrança, não é um sinal de sorte ou azar - é apenas esse cerco que a vida nos empresta. Ainda, vou pegar o telefone e ligar para ele, se não atender, confessarei meus delitos, olhando a foto do Alberto Caieiro maculada pelo tempo na tabacaria. Na janela me deixo fotografar pela sombra da decoração de natal do apartamento do bloco em frente.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Pelos fundilhos do leitor


Na última onomatopeia, meus dedos travaram. Não sei explicar direito, talvez, ou ainda, de alguma maneira, altivo, vi com os velhos olhos acometidos pelos anos, a presença que agora as minhas retinas infantis presenciam.

O convívio com os anos se tornou uma prática que venho diariamente encontrando nas caminhadas pela orla. Tão diferentes daquelas mesmas pernas brancas embutidas no bonde, vejo um desfiladeiro de Botafogo, Tijuca, Centro, Ipanema e Paquetá. Isto é o Rio de Janeiro, nem precisa da rima com primeiro mês do ano.

Outro dia, ouvi meu nome, não foi um anjo torto, mas a voz de um amigo deformada pelas oscilações dos paredões rochosos dos condomínios fechados. Raimundo me chamou para ver o ornamentado jardim de flores que organizou no quintal de casa. Em todos estes anos na cidade maravilhosa, não deixei desaparecer o sotaque mineiro. No inicio alguns esqueceram as críticas no meio do caminho, para me dizer que não demoraria mais que o amanhecer da entrega do leite e meu sotaque fechadim desapareceria. Já passaram mais de meio século de homens partidos e continuo itabirano com o suor da parteira preso nos tornozelos.

Olhando as flores em silêncio, escutava Raimundo em uma sinfonia de falas e menções sobre o tempo que foi e não é mais. Os ombros suportam o mundo, mas eu ainda tenho esperança de um dia ver o mundo suportar os ombros. Acostumei enxergar o inverso das coisas, passados tantos poemas, tenho a terrível inquietude de ver a lata de lixo ser considerada a melhor amiga do poeta. Posso revoltar-me, mas as conversas de Raimundo são prosaicas demais, isso me rememora os homens de chapéu e cantigas em tons menores durante as obras da reforma do Colégio Arnaldo, que tiravam a atenção para crescimento de Belo Horizonte. Há sempre uma resposta que não gostaríamos de ter.

Em todos estes anos de poeta, tenho perambulado muito pelo Rio, principalmente pelas proximidades dos colégios. Tão antigos em suas construções e em suas classes de português . Nas conversas na saída de aula, ouvi certa vez, alguns estudantes secundaristas discutindo que Lili foi a única com um destino feliz. Nunca tinha me perturbado com tal afirmativa, nem as noites passadas em frente o datilografo traduzindo Balzac, Proust, Lorca, escrevendo crônicas para o Correio da Manhã tiveram um peso tão imenso sobre minha poética. Sem necessitar da identidade, estrada ou bonde, voltei aos bancos escolares do Colégio Anchieta e principalmente para a aula de gramática. Percebo a minha primeira briga com a linguagem acadêmica, valendo a minha expulsão. Insubordinação, palavra que me persegue por largas décadas. Somente o meu nascimento em Itabira tem um aspecto mais remoto.

A poesia, uma insubordinação, perante a existência dos homens, que chega sem avisos prévios, exigindo apenas o dedilhar dos dedos cansados, nem sempre formando onomatopeias, ficando apenas com os versos. Me pergunto, e agora? Tantos Joses na cidade, qual deles é a essência do retrato? Nas vezes que encontro pela janela do sólido edifício o mar, ele não responde da forma como imaginei quando menino lá em Itabira. Depois já em Belo Horizonte, despertava para outros interesses e o mar continuava a ser uma linha de imensidão que ecoava em meus pensamentos, sem as águas tranquilas com marinheiros fiéis.

A verdade nasceu com a pena tinteira que herdei do meu avô materno, para anos depois ser usada nas assinaturas dos prontuários farmacêuticos, que se afastou definitivamente da minha mão antes mesmo do buço endurecer.

Nesta natureza involuntária da vida, Carlos de Paulo Andrade e Julieta Augusta Drummond, que aprendi ao longo da timidez itabirana a chamar de pais. Depois Pedro Nava, Milton Campos, Oswald e Mário de Andrade, Manuel Bandeira, ajudaram a formar gerúndios faltantes, ardendo em fagulhas quando me deparo com suas obras em prateleiras empoeiradas de livrarias. Ultimamente até mesmo as correspondências arquivei, mas nenhum arquivo é pior que os passos lentos dos meus oitenta anos.

Quem bater na porta do 701 do edifício da Conselheiro Lafayette número 60, não vai encontrar o sorriso mais recluso de Copacabana, mas quem sabe o mais gauche. Elas se estivessem aqui, diriam mais poético. Dolores e Maria Angélica, duas mulheres que a vida se responsabilizou em fazer o vão não ser mais que palavra, e amor, mais que qualquer definição. Herdei delas esse jeito, nenhum poema, nem mesmo em todas as antologias que coloquei o Carlos rompendo definitivamente com o eu lírico, conseguiu valer o verso – mais vasto é meu coração.

Sempre no meu sempre a mesma ausência, caro leitor, podes estranhar, essas voltas e idas, mas acostumei-me a viver assim.

Desta vez desconfio que não escrevi um poema.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Nua


- Apagar a luz ao deitar com você, torna nosso amor mais penumbra e menos sofisticado. Ainda prefiro sentir o gosto da boca sem ver os olhos. Essa escuridão aflora à alma.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O último voo do flamingo


No pêndulo as horas trafegam objetivas para assinalar a certeza de mais um dia. Por mais que as incertezas não sejam planas, e a despedida uma boa ação de que tudo está no caminho natural – desejado e forte. Desperto com a sensação de estar com as pálpebras insolentes. A certeza veio após passar com os calcanhares amarelos sobre a passadeira de camurça – presente de uma amiga finada. Com a estupidez matinal, não consegui urinar dentro do vaso sanitário, com um pedaço de pano umedecido de álcool esfrego as juntas do piso e azulejo – esfolando minhas mãos na parede. O sangue rubro goteja em direção aos meus pelos do punho. Abro o registro, conto mentalmente até dez e entro no box – inclino a cabeça para trás, deixo o rosto ser acometido pela brutalidade da água. Como velhos artesãos suecos pegam a lâmina para cortar a barba, tento começar. As mãos tremulas denunciam o meu receio em me barbear. A falta de costume se mostra evidente, sinto comprimir entre o indicador e o polegar o cabo plástico do aparelho. Lá na cozinha o radinho sintonizado em uma estação local informa sobre algumas denúncias da prefeitura local e os resultados dos jogos da sena e da loteria federal. Infelizmente não foi hoje que pude ganhar algo – jogo há mais de doze anos nos mesmos números e desta vez não tive nenhum dos meus algarismos sorteados. Com os dedos úmidos massageio as laterais do rosto e retiro a esfoliação característica do barbear. Ainda em pé frontal ao espelho, sentindo os pés envoltos pelas gotículas de vapor espalhadas pelo chão escuto a chamada para a previsão do tempo na rádio – penso que estas descrições de satélites não são sempre verdadeiras. A voz feminina informa sobre o tempo parcialmente nublado, esta imagem logo se descaracteriza pela lembrança da semana passada quando o tempo foi exatamente o contrário ao informado. Quando lembro que hoje não pode chover, sinto uma vontade terrível de insultar os céus. Meu nome é Ricardo Souza e hoje completo sessenta anos – depois de muito tempo em casa, sairei para um passeio, se sem chuva, melhor. Na cozinha o canário na gaiola cantarolava e parecia mais astuto que as delongas do noticiário. Logo o telefone vai tocar – vou disfarçar a estranheza. Ultimamente é assim que me sinto. Ela vai chegar e querer me dar atenção, como fosse eu fosse realmente merecedor. Não é fácil acordar na manhã do seu sexagenário aniversário - porém, com os dedos grossos eu abotôo a camisa, com todo cuidado para não precisar de mãos desconhecidas sobre o meu colarinho. Na janela, sinto o vento e o barulho das crianças no jardim – no vai e vem tão infantil dos jogos de betes. Com a ordinária solidão de uma sala de estar acompanhado de móveis e folhagens sou guiado pelos passos leves. Ainda com uma xícara de chá pela metade – escuto meu nome ser chamado no portão – a audição infalível acerta – Luisa.

- Bom dia, o senhor dormiu bem?

- Dormi como todas as noites – deitado e com os olhos fechados. A minha impaciência não era nada velada – creio que ela percebia.

- Hoje vamos sair.

Neste momento quis não acreditar na voz feminina do tempo, deixei-me levar pelos prazeres quase sepultados nos últimos anos. A minha fama de rabugento, mostrou força no meu pedido.

- Luisa, por favor, me espere na porta da sala, vou terminar meu chá com tranqüilidade. Senti-a caminhar sem pestanejar em direção a porta da sala. Estar acompanhado por uma jovem dentro de casa não era uma tarefa fácil, a minha desconfiança vintém era herança da falta de convivência e dos reflexos ausentes provocados pela idade. Sai da cozinha e atravessei a casa – antes de sair, mexi no tabuleiro de xadrez. A efusividade ganhou campo e eu com meus sessenta anos soltei em plenos pulmões – vamos de uma vez. Foi à primeira vez em muito tempo que alguém ouvia uma manifestação contundente minha. Escutei as passadas fortes de Luisa e aos poucos a sua voz doce, contornando vogal por vogal naquela oratória provinciana de vida e adjetivada de momento.

- Seu Ricardo, não sei como descrever tudo o que sinto ao vê-lo tão bem. Escutar uma afirmativa desta era confirmar que a voz feminina do tempo estava realmente incorreta – cândido sorri – peguei a minha pequena mala e me dirigi a porta. Luisa me abraçou e pude sentir o aroma do seu pescoço roçando o meu queixo liso.

Durante o percurso apenas queria esquecer a minha implicância com o mundo que eu conhecia há pouco tempo – para dizer a verdade, há ilustríssimos poucos momentos. Luisa falava entusiasmada da minha melhora – dizia da recuperação rápida e da minha postura como um homem. Aos poucos, eu não sabia muito bem o que pretendia aquela jovem – a minha saga vintém se mostrava mais rígida. Com a demora do percurso me eximi de silêncio – pouco a pouco voltei a minha juventude e principalmente a época em que eu pude ser mais eu mesmo. A desculpa não poderia ser maior, trabalhava em um cartório e não posso reclamar muito da minha posição crítica em relação ao mundo, aprendi no convívio com escrivões, advogados e juizes. Quando chegava perto da minha maior ausência – fui abruptamente interrompido por Luisa.

- Descemos aqui senhor Ricardo.

A estranheza de escutar a pronúncia do meu nome após algum tempo, deflorava uma ânsia de sair correndo e nunca mais voltar – nem mesmo que os passos fossem atropelados por algum motorista em seu horário de almoço. Sentia a camisa esmagar o meu pescoço – logo hoje que eu tinha fechado botão por botão com todo cuidado. Ela quis pegar em meu braço, me desvencilhei e calei a boca. Escutava um silêncio que se misturava com o barulho de nossos passos – um tanto sinuosos. Já começava a ficar entediado com toda aquela andança.

- Aqui.

Ela falou de um jeito até como nunca tinha falado em todos os nossos encontros. Parado como estivesse com um precipício a minha frente – fiquei. Insistindo ela repetiu o meu nome.

- Senhor Ricardo sabe em qual lugar estamos?

- Não – A resposta monossilábica enfática contrariava o meu posicionamento irônico característico e todo aquele meu espasmo alegre de pouco tempo. Fiquei com a insolente vontade de dizer – se eu soubesse você não estaria me perguntando cretina.

- Estamos no cemitério.

O começo do final, isso que senti ao escutar a afirmativa da localidade onde nos encontrávamos. Entre a fraqueza de não falar nada, optei pela força de poucas palavras – leia para mim.

- O senhor tem certeza? A sua voz desconfiada denunciava que mesmo sendo a pessoa que mais convivia comigo nos últimos tempos, seu receio ainda existia.

- Luisa, pode ler. Após instantes no agouro do sol escaldante ela começou a leitura.

- Maria Rute Souza – 15 de março de 1945. Em um grito gutural a interrompi.

- Chega.

Maltratar sentimentos é descaso com um coração, no meu caso eu estaria maltratando vários corações naquele momento. Optei por saber sobre o epitáfio da pessoa que foi o meu olhar por mais de três décadas. Se eu não poderia ler, não queria que ninguém mais lê-se para mim. Pode parecer estranho, mas saber da morte não interessaria, pois para quem sempre viveu no escuro, ela é apenas mais uma palavra – com denotação eterna da ausência.

O clima no caminho de volta entre eu e Luiza foi horrível, nunca torci tanto para chegar em casa. Quando ela me deixou na porta da sala, e se despediu, tive a sensação de nunca mais vê-la. Com a vaga sensação de liberdade, caminhei até o banheiro para mais um banho. Minhas mãos gastas alisavam o meu rosto – agora um pouco mais honesto. Deitado na cama escuto a televisão e na chatice da programação penso em pegar o telefone e ligar para Luisa – no mínimo me desculpando. Desisto ao perceber o horário – deito de bruços para acomodar a minha coluna sexagenária. Inebriado pelos sonhos deixei-me de me preocupar, pois sempre vi o mundo pelos olhos dela – agora, começo senti-los pela presença de Luisa.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Beira Mar

Na manguaça dos últimos dias, não puderam lembrar das preces tatuadas nos tornozelos. Tatu, inconformado com as constantes bebedeiras, chiou pelas ventas.

- Agora deu para falar pelos cantos - resmungou um dos marinheiros de dedos e bigodes amarelados.

Fosse apenas cantos, mas Tatu fala desde os tempos de pelada no clube Lusitano. Não gostara do passado português aprendido nos bancos escolares - com voz rouca gritava: perder nunca.

Cão dos diabos, não vês que sabes pouco. Sorte sua que seu focinho não enferruja. Chamou o trinta e um e deitou no cais. As senhoras passavam com seus calcanhares ralando no seu nariz.



quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O melhor bichano, não existe

Sempre fui um bunda mole. Soubesse mais, não me lamentaria com as historietas contadas pelos vizinhos. Por coincidência, nem mesmo Fausto, este imprestável, conivente com toda desordem familiar nos últimos anos, fez algo.

- Seu merda. Imprestável - pela segunda vez, proferi essa palavra, antes mesmo de sentir o enxovalho nos fundos do sofá. O bichano esperto, camufla as orelhas, sentindo mais uma das suas vidas se despedindo. Claro, passar noventa horas em ponteiros do relógio, nas últimas vinte quatro horas, não é fácil.

As vezes, tenho a certeza, todas essas mudanças, são coisas necessárias - mas ver um gato que rouba a atenção dos filhos, engordando, e acumulando o aumento das unhas, apenas miando quando sente falta de comida, não o torna capaz de ser diferente de um animal.

Na condição de bunda mole, receio que a figura paternal é mais exigente. Culpa de quem não provocou a reviravolta, ao saber que de todos os gatos, nenhum vai conseguir avançar na cara das mulheres do meu pai.


domingo, 26 de setembro de 2010

Quinto dia útil


O televisor, ainda com prestações em atraso. Bem que avisei a muié, mas ela se deixou levar pela bobice do vendedor sorridente pelos dez por cento da venda. Para ver o mundo prefiro olhar pela janela, essas coisas de tevê é para quem gosta de novela. Outro dia escutei no noticiário da noite – sonegação de impostos em um pequeno município do estado. Lembrei do dia em que aquele homem de fala bonita, chegou até nós no pátio da fábrica e disse que mudaria a cidade. Até hoje, procuro a cidade que ele prometeu.

- Veja isso.

A muié insiste em chamar, não sabe ela, o preço do arroz que eu deixei de comprar, por aquele maquiado que ela assiste agora na tevê.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Agosto


Aos passos largos chegamos ao hall do hotel Tapajos. Depois de cruzar a frente do luminoso do antigo Cine Avenida, que estava com a fonte da letra C queimada. Passar no inicio de noite por ali, era uma espécie de eternidade, conseguida somente em filmes com James Stewart, apesar de gostar muito mais do expressionismo no gestual do cinema mudo. Frequentar um ambiente hoteleiro, não era comum para nós - aspirantes a profissão de jornalistas. Toda aquela mobília do século passado, muito bem ornamentada, nos deixava com um teor de vergonha. No posto de cicerone da pauta, avantajei os ombros sobre o balcão, antes de identificar-se ao atendente do hotel.
Nesta mistura de estímulo juvenil e falta de cadência profissional, percebi que Dario estava inquieto. Ciente do seu comportamento arredio, não hesitei em perguntar o motivo - ele balançou a cabeça para a ponta esquerda do balcão. Lá estava um dos jornalistas e mais pomposo escritor da cena política do estado. Não entendendo tal comportamento, perguntei o motivo da repulsa pela presença do Olympio Soares - sem tempo para uma resposta imediata, emendei - você sempre me disse gostar das crônicas e da forma como ele escreve seus textos, inclusive afirmando que seus escritos no domingo eram melhores que os gols do Pelé. Realmente - mas o Olympio está muito chato, seus textos estão cada domingo mais iguais. Notoriamente abdiquei a fala do Dario, ao mesmo tempo relembrava das conversas em que ele me confidenciava sobre a influência recebida do Olympio. Paralela a essa afirmativa desconfiava que ali começava surgir um dos seus traços desregrados da sua posterior publicação literária.
Depois daquele evento no hotel, alguns meses mais tarde, o velho Olympio faleceu em Buenos Aires, nesta época ele era um dos jornalistas enviados para cobrir conflitos estudantis na capital argentina. No dia da sua morte, quando o telefonema chegou ao Brasil, estávamos reunidos na redação da A Hora. Nesta altura eu era o editor do caderno cultural e o Dario ensaiava nos confins da cidade os percalços da marginalidade que começava aparecer. Mesmo sendo uma editoria desprezada pela maioria das pessoas que faziam parte do jornal - Dario esbravejava sempre que alguém cogitava participar de alguma pauta policial - ali, era o lugar de onde as evidências podiam ser escritas em pequenos leads. Ao baque do telefonema, falei para o Dario sobre o falecimento do Olympio, muito friamente, ele se limitou a responder - o estado perde, a política mais ainda.

- Vamos tomar um café? Surpreso, compactuei do convite, assim rebatia o frio daquele começo de noite e ainda fumava mais um cigarro, provavelmente o vigésimo do turno.
A morte do Olympio acabou deixando a imprensa local órfã de uma pauta criteriosa no campo político. Nos bate-papos a consternação era imensa, mesmo o A Hora sendo um concorrente dos jornais para que o Olympio publicava, todos nós, jovens acabávamos influenciados e admiradores dele.. Nesta altura a força da redação estava centrada no comprometimento de jovens universitários em contato com o antigo jornalismo, já desgastado.
Naquele tempo as redações começaram a padecer perante aos censores, que ali começavam a se estabelecer. Aos poucos os potenciais jornalistas foram desvencilhados - alguns por medo, outros por intensa ousadia.
Minha última conversa com alguns colegas de redação e inclusive com o próprio Dario foi em julho de 60. Passando por uma livraria no centro, vi aquele sujeito com um sobretudo marrom, a coluna arqueada, a qual ele sempre se queixou de dor, denunciava, era o Dario. Com um livro do Salinger nas mãos, ao ser chamado, ele sorriu resumidamente. Conversamos sobre muitas brevetudes - futebol, política, inclusive o seu problema hereditário de coluna - a vida é assim, certas dores, são mais que uma visão crítica da cidade, me disse com seu tom autoral de sempre. Ele ainda perguntou como estavam os andamentos da cobertura policial. Disse que após a sua saída da editoria, já tinham passados inúmeros rapazes, mas o interesse de universitários estava cada vez mais escasso. Ousei afirmar que a culpa era da intervenção militar - neste momento Dario me espiou de forma salingeriana e disse: o som de duas mãos não pode ser necessariamente o do cumprimento, sim o do atrito com as paredes.
Após este encontro, nunca mais tive oportunidade para um contato mais próximo com o meu companheiro de juventude jornalística. Os outros colegas dos tempos de redação do A Hora se tornaram em grande parte, produtores de arte - infelizmente em um país que começava a ficar cada vez mais vigiado pela ditadura militar. Em agosto de 64, precisei sair do estado via Foz do Iguaçu, após quase dez horas dentro de um ônibus lotado de pessoas, todas com o semblante de desespero, embarcamos para uma suporta liberdade em países, principalmente europeus.
De longe, eu recebia notícias semanais dos bravos amigos que continuaram produzindo sobre as amarras da censura que cercavam o A Hora. Estas notícias era a vida que eu tinha e gostaria de não ter. Por uma correspondência endereçada ao edifício de quarto, sala e cozinha em Sevilha na Espanha, desabei perante a leitura da carta - dois grandes amigos, tinham sido levados de suas casas e foram achados mortos quase duas semanas depois do desaparecimento. Foi a primeira vez que senti minhas lágrimas serem mais pesadas que qualquer extensão de sentimentos. Como poderiam assassinar dois promissores artistas do país - me indagava em desespero. Mesmo acreditando que somente a obra fica, e isso, já estaria eternizado. Naquela mesma tarde resolvi ir até um dos diversos cinemas de rua na parte menos frequentada por turistas na cidade espanhola. Dentro da sala, apenas o projetor, um casal de namorados e todas minhas lembranças.
Hoje ao escutar o noticiário, soube do lançamento do novo livro do Dario. É mais um dentro de sua imensa carreira literária. Outro dia, em conversa com alunos em uma universidade, durante um evento da semana de comunicação, falei dos episódios do jornalismo universitário, com envolvimento de uma juventude que ousava fazer algo melhor dentro do Brasil. Uma aluna disse que leu certa vez, que a herança do Olympio, jamais foi seguida dentro do jornalismo universitário - por um momento, me peguei pensando de forma como nunca havia dentro da minha vivência octogenária. Seria mesmo uma das inovações que deixamos para o jornalismo - foi a minha resposta aos alunos ali presentes.
Ainda dentro do complexo universitário, deparei-me com um cartaz do Governo Federal, nas fotos dos desaparecidos políticos, nele estava impressa a do Dario, minha vontade foi ligar no mesmo momento para o 0800 e dizer umas boas, confirmando o erro. Afinal ele estava vivo e produzindo como nunca. Sutilmente, lembrei da última conversa em 60, naquela resposta ruidosa dele - voltei para casa com o sentimento herdado do discurso da época ditatorial - ame-o ou deixe-o, neste caso, fiquei com a segunda opção.


quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Três lados

Eu quis olhar pela janela. Desconfiando do que poderia provocar, resolvi evitar o olhar em sua direção.

O silêncio piava alto.

Naquele momento, a cozinha era o refúgio.

Ali, permanecemos.

Aos poucos voltamos conversar, historietas da infância, vivência com os outros. Sempre foi muito mais fácil se reconhecer estrangeiro – mesmo as línguas sendo as mesmas.

domingo, 18 de julho de 2010

Equinócios


Nas primeiras semanas, ainda acanhada e com os braços de fora, pedia permissão para abrir a geladeira. Acabava por não me incomodar com esse tradicionalismo que ela apresentava. O deleite de perceber tal comportamento fugidio me deixava inibido.

A minha preocupação começou quando ela passou ficar mais tempo no banheiro que o necessário. Os seus cabelos molhados derrubando água no piso. Descalço meus dedos carregavam alguns fios viscosos de condicionador. Com o tempo um único banheiro em nosso lar passou a ser uma disputa desleal, vencida por ela e a tarifa de energia elétrica.

Aos poucos o convívio entre nós passou a ser uma tática militar – prevalecendo vozes mais altas. Enquanto o futebol na televisão vociferava no repúdio do narrador com a seleção, ela se concentrava na leitura de romances portugueses. Por vezes, interrompia para perguntar algum detalhe do livro. Respondia como um típico torcedor, bastando para ela largar o livro sobre o sofá e sair da sala.

A cada dia reparava que os espaços estavam cada vez menores, acostumei-me a ficar na companhia da luminosidade da decoração do aquário, que a estas alturas incomodavam. Despertava com o barulho do secador. Horrivelmente saia do sofá e me preparava para mais um dia de trabalho. Certa vez ela interrompeu uma de suas leituras e disse calmamente: que tínhamos que ter dois banheiros. Surpreso, tentei formular alguma resposta. Olhando-a, percebi sua mão sobre a barriga. Sem dúvidas, mudamos dias depois para outra casa. Agora vivemos nos preocupando com o nome do nosso filho. E ainda temos mais seis meses pela frente.

sábado, 3 de julho de 2010

Pensão Danúbio

Costumava ficar com sua sanfona nas imediações da loja dos Turcos no calçadão central. Com seus dedos gastos dedilhava acordes em tons menores, entre uma canção populista e umas moedas recebidas entoava um muito obrigado. Por dias tem conseguido acertar as contas da pensão Danúbio.
- Agora, Zé, tu ta podendo, hein. Mineirinho disse que vê vários candangos circulando você no calçadão.
- Toma. Deixo pago as duas próximas semanas.
- Não disse – você está mudado mesmo.
- Claudete, deixa ser boba por dinheiro. Um dia ainda morre segurando uma nota de cinqüenta reais.
- Se for na mão, será a resposta de mais de trinta anos de balcão.
Já sem camisa no quarto, deitava para descansar do serviço daquele dia. Sem poder fumar desde a última ameaça de infarto, dizendo para os conhecidos que somente parou para não amarelar ainda mais os dentes . Sua angustia aumentava ao escutar os barulhos da quarto ao lado – na fornicação paga.
Com o calor do quarto, abriu a porta e encostado no caixilho ficou por um bom tempo o celebrando ociosamente. Ao ver Deby saindo do seu aposento, tentou voltar meio passo para trás.
- Zé! Tu não toca para as meninas?
- Não. Roubando cego é fácil.
No interior nos tempos de juventude, retornava sempre para casa às 19 horas para pedir benção para a mãe. Costumava sempre sair escondido para as noitadas em bocadas da cidade – aos poucos teve contato com as poucas zonas clandestinas. Casar, jamais. Ouvira de um tio que homem esperto não casa e nem tem carteira assinada. Com os primos trabalhou por algum tempo em um pequeno comércio de material de construção. Teve um caso com a esposa de um dos primos, após escutar dela que o esposo gostava apenas de futebol – o crápula teve a petulância de ir até a casa deles com uma camisa surrada do Bangu.
Ainda na porta, já baixando o olhar para as pernas de Deby, teve a ideia de convida-la para entrar no seu quarto.
- Gosto de sua discrição, ela disse.
Malandro, agarrou a sanfona e começou a tocar várias notas repetidas. Por um tempo, apenas lembrou dos tempos de interior.
- Pega.
- Não acha que vou acreditar nessa história musical apenas.

Em pânico ele fica ao lembrar que Claudete certa vez disse que Deby não era exatamente uma mulher. Fecha os olhos para evitar a realidade, pega uns trocados e oferece a ela para sair.
- Não quero. Aproveita não tem ninguém vendo.

Gigolô que não era, ficou apenas com sua velha sanfona no calçadão. Toda noite quando voltava para a pensão escutava das prostitutas e travestis do Danúbio – Zé a gente ainda vai casar com você.

domingo, 27 de junho de 2010

As filhas da mãe


Para ele escrever sempre foi mais que um esforçado e criativo verbo. Começou despertando todos os vizinhos dos andares acima e abaixo do seu apartamento. O tac-tac dos seus anulares nas desgastadas teclas da máquina exalavam enredos cáusticos. Ao lado da máquina na mesa dispunha lateralmente as folhas branquíssimas uma sobre as outras. Colocava gravata e usava uma calça extremamente alinhada. Desde a mocidade sempre quis ser escritor, porem como a disciplina é ausente para a criatividade – ficou apenas com a disciplina. Traduzia milhares de páginas mensalmente – certas vezes abria um sorriso jocoso ao se sentir como o criador de Gregor Sansa – quando no final de uma manhã assinou com letra borrada – Kafka/II/VII. Andou até a janela e acendeu um cigarro, anteriormente chegou a fumar a cada nova lauda digitada – porém com o tempo diminuiu o ritmo graças às reclamações da esposa.

Fechado no escritório não percebia a vida, escutava apenas os ruídos vindos de fora. Neste passo não reconhecia o crescimento das filhas – Laura e Julia. Nesta época elas corriam pelo apartamento todo e, sabiam como ninguém despertar a ira do pai – que quando acompanhado não conseguia traduzir uma palavra sequer. Ficava restrito ao ridículo de perceber o extravasamento de vida delas. Tinha a sensação de que ser escritor é ser sozinho, um sujeito de alma grande apenas nas páginas e ativista de causas esquerdas. Seria tudo fácil se pudesse voltar para frente da mesa e encarar as teclas da máquina.

O fascínio provocado pelas traduções escritas ao longo da carreira era amedrontado pelo despertar das suas filhas. Ainda recentemente alternavam rodopios no útero materno, agora já estatelavam os olhinhos nas atividades deste ser aqui – homem, escritor, pai – a ordem precisava ser assim – pensava triunfante.

Compenetrado no trabalho era possuído por uma das traduções de Wilde – “hoje tenho de manter o Amor em meu coração, senão como vou ser capaz de viver este dia”. A intimidade com De Profundis o despertava para as coisas não feitas pela família. Lembrou uma breve discussão com a esposa – Quando você se apega ao trabalho e o dinheiro acaba morrendo por fora. A verdade custava laudas desperdiçadas no toc-toc na máquina. Qualquer homem metódico pensaria na injustiça cometida por Elis, mas naquela situação fraquejou e precisou se retirar do escritório. Não conseguiu – não seria o trabalho responsável pela fissura familiar. A descoberta o fez voltar ao trabalho – puxou uma nova folha e começou a escrever sua própria história – jogou o restante das folhas no chão, afrouxou o nó da gravata, descalçou os sapatos. As obsessões eram batidas nas teclas – ninguém pode me obrigar a escrever o que querem ler, jamais serei um Shakespeare – sentenciou. Deixou a coluna solta e com a cabeça solta começou a pensar em seu primeiro romance. A concentração foi abruptamente interrompida pelo toc-toc na porta. Ao abrir encontrou Laura de pijama com listras rosa e branco. Com um olhar desconhecido ela o encarou e foi puxando-o pelas mãos, sem dizer nada. Todos deveriam dormir naquele momento, inclusive a filha que o levava apegado as suas mãos. Chegando no quarto das filhas, olhou para a Julia após o apontamento do anular de Laura – ela dormia abraçado a um livro. Ao lado da cama, junto com alguns bichos de pelúcia estava uma folha de caderno com uma caligrafia desproporcional, típicas de crianças alfabetizadas há pouco tempo. Acompanhado da filha ele começou a sentir desconforto de estar sozinho, sem o acompanhamento da lata de lixo para amassar mais uma lauda. Deitou Laura na cama e arrumou a gola do seu pijama. Ali começou verdadeiramente sua melhor tradução – dormiu vestido socialmente.

domingo, 6 de junho de 2010

Ping- pong


Cena I

- Como consegue chegar tarde?

- Não sei.

- Nova moda?

- Pode ser.

- Copa do mundo.

- México.

- Enlouqueceu?

- Não.

- Parece.

- Estranho.



Cena II

- Estava vendo o jogo?

- Sim.

- Com todos seus amigos divorciados?

- Alguns adúlteros.

- Vergonhoso.

- Não.

- Como?

- Nada.

- Estranho.

- Cada dia mais.



Cena III

- Amor.

- É.

- Não seja irônico!

- Claro.

- Vamos dormir?

- Quem sabe.

- Você não muda.

- Aprendi.

- Com quem?

- Vamos dormir.

domingo, 16 de maio de 2010

Peixes não dormem


A senhora deveria se comportar. Não a vi nos últimos dias. Perdoe-me.

Tudo que escrevo é na transição entre um cliente e outro. Perdoe, caso falte delicadeza nas palavras. Me calo por aqui.



ps: não esqueça da ração dos peixes, siga a recomedação descrita no rótulo.

domingo, 11 de abril de 2010

O erro


Na noite em que matou aquele homem não soube direito o que fazer – lembrando apenas de fechar a porta de zinco da sala. Passado alguns minutos, já estava em frente ao um instituto de beleza, duas quadras acima da sua casa. Em um ônibus com seus vidros embaçados, aquela mulher de pernas desnudas desceu. Espantada com a sua presença naquela hora da noite, bifurcou as sobrancelhas – o que fazes aqui? A meninota a abraçou fortemente.

- Ele.


- O que aconteceu com ele? Mediante ao silêncio, afastou-a.


- Diga o que ocorreu?


- Eu o matei.


- Você matou? – gaguejando, disse: matei meu próprio pai.

- Ele não era seu pai.


O desespero compulsivo prevaleceu em lágrimas para sempre em sua vida.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O santo


Centro – seis da manhã. Depois de beber, cansar os seus santos com pedidos. Chamou o garçom e pagou. Algumas passadas depois e um conhecido a caminho do trabalho o convidou para um café na padaria do Lisboa.

- Não posso, promessa para os santos. Se eu beber café agora eu posso morrer.

...

E morreu.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Comédia em 2 atos


O homem:

- Não traio, não disfarço, não sou bonito, não trabalho, não gosto de futebol. Meu único medo é morrer.


Na última fileira do teatro o vazio.

- Esse sou eu padecendo com pancake no rosto.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Novidade


Meninote, buço ainda ralo, usando camisa de vereador e apitando com um cigarro de filtro amarelo. Os olhos atrás de uma lente forte. Não olhando as meninas.

É a idade.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Amor as causas


O funcionalismo público era sua vida. Horas a fio sobre processos e causas.

Fez do amor uma medida provisória.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Unanimidade


Maria deitada na cama. João folheando o jornal de ontem. Ela com cólica, retorcendo a ponta do nariz. Ele com o cigarro no cinzeiro ao lado do abajur.

Virando-se de costas, puxando o edredom sobre a bunda – boa noite, João.


- Que abuso da taxa SELIC, viu Maria?

sábado, 16 de janeiro de 2010

Feliz Aniversário



D
esperto com a ode do trânsito, nas esquinas a noite ainda tem seus últimos instantes, nas vergonhas moribundas que avisto da janela do quarto. A maquiagem do dia começa a ensandecer no condomínio, a casa de máquinas do elevador ativa o segundo trapézio. O latido do cachorro da senhora aposentada ainda não se evadiu. Complicado é agüentar o pulha do menino que resolve botar o apartamento abaixo quanto seus pais viajam. Ligo a televisão, o dedo inquieto alicia todos os canais do mundo, depois de eternos quatro minutos, desligo. Ainda arrastado pelos olhos empedrados, desafio as pernas para chegar até a porta. Os enfeites de natal ainda estão sobre a mesa de canto, por caridade a minha mãe, ainda deixo ali, mesmo sabendo que o dia de reis já passou há quase dez dias.

Coloco uma camiseta surrada, acendo um cigarro e atravesso a saleta. Com a mão deslizando no trinco redondo, lembro da placa proibitiva de cigarro no condomínio. Sem perder o embalo das pernas, meia passada para trás – com um leve toque apago o cigarro entre o indicador e o polegar. No trapézio que é responsável pela taxa abusiva de condomínio a rádio não ofusca a trepidação até o térreo. Queixo roçando o peito, contrariando recomendações do ortopedista, passos longos para alcançar o jornal de domingo. Bicho grilo, na portaria tomando seu copo de café, penso em soletrar alguma coisa, mas melhor mesmo é ficar no gestual.
Já dentro da saleta, sento para ler o jornal, e somente depois da leitura do caderno de esportes, lembro do meu aniversário hoje. Acendo um cigarro, volto para o quarto e ligo a televisão. Ainda sem ser abduzido pelas sinfonias dos outros, volto a dormir, balbuciando um feliz aniversário.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Climatério


O despertador de tic-tac do relógio de corda da tia avó findou o silêncio na casa. Nem mesmo o sorrateiro galo progenitor do galinheiro da família se livrou do tilintar do metal sucumbindo pelo ponteiro de chumbo. Abrindo o bico engasgou em um cacarejar que contradizia a modernidade. Os postes ainda laranjados no incandescente sofriam com a claridade e os primeiros raios de sol. Ao colidir a cabeça com o vaso da samambaia, ficou perplexa com as pontas secas e ali penduradas, como fossem troféus de quem as esqueceu. No tanque encheu de água um pequeno bule com o gargalo amassado, e deixou pingar - gota a gota do líquido que escorria do alumínio e deslizava na cera até formar a mácula de gordura. Regando as samambaias, tinha uma oratória que aprendeu na terapia de casais – e tratava de interpretar o papel do homem, esculachando a folhagem puxando orgasticamente as folhas secas.

Ajoelhou-se com um pano nas mãos e começou a esfregar as máculas que há pouco tinha sido depositada ali. No tempo de casada jamais precisou se ajoelhar naquelas condições – fazendo a sentir o gosto de voltar para o apartamento de dois quartos na região central da cidade. Sorrateira foi até a janela fitar o galo de penas rubras – que não cacarejava mais.