Desperto com a ode do trânsito, nas esquinas a noite ainda tem seus últimos instantes, nas vergonhas moribundas que avisto da janela do quarto. A maquiagem do dia começa a ensandecer no condomínio, a casa de máquinas do elevador ativa o segundo trapézio. O latido do cachorro da senhora aposentada ainda não se evadiu. Complicado é agüentar o pulha do menino que resolve botar o apartamento abaixo quanto seus pais viajam. Ligo a televisão, o dedo inquieto alicia todos os canais do mundo, depois de eternos quatro minutos, desligo. Ainda arrastado pelos olhos empedrados, desafio as pernas para chegar até a porta. Os enfeites de natal ainda estão sobre a mesa de canto, por caridade a minha mãe, ainda deixo ali, mesmo sabendo que o dia de reis já passou há quase dez dias.
Coloco uma camiseta surrada, acendo um cigarro e atravesso a saleta. Com a mão deslizando no trinco redondo, lembro da placa proibitiva de cigarro no condomínio. Sem perder o embalo das pernas, meia passada para trás – com um leve toque apago o cigarro entre o indicador e o polegar. No trapézio que é responsável pela taxa abusiva de condomínio a rádio não ofusca a trepidação até o térreo. Queixo roçando o peito, contrariando recomendações do ortopedista, passos longos para alcançar o jornal de domingo. Bicho grilo, na portaria tomando seu copo de café, penso em soletrar alguma coisa, mas melhor mesmo é ficar no gestual.
Já dentro da saleta, sento para ler o jornal, e somente depois da leitura do caderno de esportes, lembro do meu aniversário hoje. Acendo um cigarro, volto para o quarto e ligo a televisão. Ainda sem ser abduzido pelas sinfonias dos outros, volto a dormir, balbuciando um feliz aniversário.
2 comentários:
Adorei o texto, simples mas perfeito. Adorei o ritmo e as palavras. Adorei a melancolia e a força que há nele.
Gostei muito! Parabéns!
Que blog bom. Que conto bom. Senti vontade de dizer feliz aniversário.
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