sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A última quimera

Na última quimera do ano, lambeu os beiços, escondendo a pose da esposa. Aos filhos, sorrisinho de canto de boca. Esse jantar, começou antes dos ponteiros chegaram ao ano novo. Na mesa a família toda, muitos com parentesco distante - inclusive um tio avô do seu padrasto.
Na fé da santinha, herdada da tradição familiar do lado materno, uma oração do Pai Nosso, murmurinhos dos mais velhos, crianças sorrindo e uns tios evocando as passagens de ano na praia.
A tradição de estarem todos juntos é uma condição que não praticaram em viradas de ano anteriores - dessa vez, pediu repeteco na quimera, que poderia vir com um vinho rosé. A família toda não escutou esse pedido, todos preocupados com a chegada de mais um ano.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O primeiro cigarro do dia


Chegar derrubando pela madrugada o único copo que simbolizava a mais ingrata lembrança, não é um sinal de sorte ou azar - é apenas esse cerco que a vida nos empresta. Ainda, vou pegar o telefone e ligar para ele, se não atender, confessarei meus delitos, olhando a foto do Alberto Caieiro maculada pelo tempo na tabacaria. Na janela me deixo fotografar pela sombra da decoração de natal do apartamento do bloco em frente.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Pelos fundilhos do leitor


Na última onomatopeia, meus dedos travaram. Não sei explicar direito, talvez, ou ainda, de alguma maneira, altivo, vi com os velhos olhos acometidos pelos anos, a presença que agora as minhas retinas infantis presenciam.

O convívio com os anos se tornou uma prática que venho diariamente encontrando nas caminhadas pela orla. Tão diferentes daquelas mesmas pernas brancas embutidas no bonde, vejo um desfiladeiro de Botafogo, Tijuca, Centro, Ipanema e Paquetá. Isto é o Rio de Janeiro, nem precisa da rima com primeiro mês do ano.

Outro dia, ouvi meu nome, não foi um anjo torto, mas a voz de um amigo deformada pelas oscilações dos paredões rochosos dos condomínios fechados. Raimundo me chamou para ver o ornamentado jardim de flores que organizou no quintal de casa. Em todos estes anos na cidade maravilhosa, não deixei desaparecer o sotaque mineiro. No inicio alguns esqueceram as críticas no meio do caminho, para me dizer que não demoraria mais que o amanhecer da entrega do leite e meu sotaque fechadim desapareceria. Já passaram mais de meio século de homens partidos e continuo itabirano com o suor da parteira preso nos tornozelos.

Olhando as flores em silêncio, escutava Raimundo em uma sinfonia de falas e menções sobre o tempo que foi e não é mais. Os ombros suportam o mundo, mas eu ainda tenho esperança de um dia ver o mundo suportar os ombros. Acostumei enxergar o inverso das coisas, passados tantos poemas, tenho a terrível inquietude de ver a lata de lixo ser considerada a melhor amiga do poeta. Posso revoltar-me, mas as conversas de Raimundo são prosaicas demais, isso me rememora os homens de chapéu e cantigas em tons menores durante as obras da reforma do Colégio Arnaldo, que tiravam a atenção para crescimento de Belo Horizonte. Há sempre uma resposta que não gostaríamos de ter.

Em todos estes anos de poeta, tenho perambulado muito pelo Rio, principalmente pelas proximidades dos colégios. Tão antigos em suas construções e em suas classes de português . Nas conversas na saída de aula, ouvi certa vez, alguns estudantes secundaristas discutindo que Lili foi a única com um destino feliz. Nunca tinha me perturbado com tal afirmativa, nem as noites passadas em frente o datilografo traduzindo Balzac, Proust, Lorca, escrevendo crônicas para o Correio da Manhã tiveram um peso tão imenso sobre minha poética. Sem necessitar da identidade, estrada ou bonde, voltei aos bancos escolares do Colégio Anchieta e principalmente para a aula de gramática. Percebo a minha primeira briga com a linguagem acadêmica, valendo a minha expulsão. Insubordinação, palavra que me persegue por largas décadas. Somente o meu nascimento em Itabira tem um aspecto mais remoto.

A poesia, uma insubordinação, perante a existência dos homens, que chega sem avisos prévios, exigindo apenas o dedilhar dos dedos cansados, nem sempre formando onomatopeias, ficando apenas com os versos. Me pergunto, e agora? Tantos Joses na cidade, qual deles é a essência do retrato? Nas vezes que encontro pela janela do sólido edifício o mar, ele não responde da forma como imaginei quando menino lá em Itabira. Depois já em Belo Horizonte, despertava para outros interesses e o mar continuava a ser uma linha de imensidão que ecoava em meus pensamentos, sem as águas tranquilas com marinheiros fiéis.

A verdade nasceu com a pena tinteira que herdei do meu avô materno, para anos depois ser usada nas assinaturas dos prontuários farmacêuticos, que se afastou definitivamente da minha mão antes mesmo do buço endurecer.

Nesta natureza involuntária da vida, Carlos de Paulo Andrade e Julieta Augusta Drummond, que aprendi ao longo da timidez itabirana a chamar de pais. Depois Pedro Nava, Milton Campos, Oswald e Mário de Andrade, Manuel Bandeira, ajudaram a formar gerúndios faltantes, ardendo em fagulhas quando me deparo com suas obras em prateleiras empoeiradas de livrarias. Ultimamente até mesmo as correspondências arquivei, mas nenhum arquivo é pior que os passos lentos dos meus oitenta anos.

Quem bater na porta do 701 do edifício da Conselheiro Lafayette número 60, não vai encontrar o sorriso mais recluso de Copacabana, mas quem sabe o mais gauche. Elas se estivessem aqui, diriam mais poético. Dolores e Maria Angélica, duas mulheres que a vida se responsabilizou em fazer o vão não ser mais que palavra, e amor, mais que qualquer definição. Herdei delas esse jeito, nenhum poema, nem mesmo em todas as antologias que coloquei o Carlos rompendo definitivamente com o eu lírico, conseguiu valer o verso – mais vasto é meu coração.

Sempre no meu sempre a mesma ausência, caro leitor, podes estranhar, essas voltas e idas, mas acostumei-me a viver assim.

Desta vez desconfio que não escrevi um poema.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Nua


- Apagar a luz ao deitar com você, torna nosso amor mais penumbra e menos sofisticado. Ainda prefiro sentir o gosto da boca sem ver os olhos. Essa escuridão aflora à alma.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O último voo do flamingo


No pêndulo as horas trafegam objetivas para assinalar a certeza de mais um dia. Por mais que as incertezas não sejam planas, e a despedida uma boa ação de que tudo está no caminho natural – desejado e forte. Desperto com a sensação de estar com as pálpebras insolentes. A certeza veio após passar com os calcanhares amarelos sobre a passadeira de camurça – presente de uma amiga finada. Com a estupidez matinal, não consegui urinar dentro do vaso sanitário, com um pedaço de pano umedecido de álcool esfrego as juntas do piso e azulejo – esfolando minhas mãos na parede. O sangue rubro goteja em direção aos meus pelos do punho. Abro o registro, conto mentalmente até dez e entro no box – inclino a cabeça para trás, deixo o rosto ser acometido pela brutalidade da água. Como velhos artesãos suecos pegam a lâmina para cortar a barba, tento começar. As mãos tremulas denunciam o meu receio em me barbear. A falta de costume se mostra evidente, sinto comprimir entre o indicador e o polegar o cabo plástico do aparelho. Lá na cozinha o radinho sintonizado em uma estação local informa sobre algumas denúncias da prefeitura local e os resultados dos jogos da sena e da loteria federal. Infelizmente não foi hoje que pude ganhar algo – jogo há mais de doze anos nos mesmos números e desta vez não tive nenhum dos meus algarismos sorteados. Com os dedos úmidos massageio as laterais do rosto e retiro a esfoliação característica do barbear. Ainda em pé frontal ao espelho, sentindo os pés envoltos pelas gotículas de vapor espalhadas pelo chão escuto a chamada para a previsão do tempo na rádio – penso que estas descrições de satélites não são sempre verdadeiras. A voz feminina informa sobre o tempo parcialmente nublado, esta imagem logo se descaracteriza pela lembrança da semana passada quando o tempo foi exatamente o contrário ao informado. Quando lembro que hoje não pode chover, sinto uma vontade terrível de insultar os céus. Meu nome é Ricardo Souza e hoje completo sessenta anos – depois de muito tempo em casa, sairei para um passeio, se sem chuva, melhor. Na cozinha o canário na gaiola cantarolava e parecia mais astuto que as delongas do noticiário. Logo o telefone vai tocar – vou disfarçar a estranheza. Ultimamente é assim que me sinto. Ela vai chegar e querer me dar atenção, como fosse eu fosse realmente merecedor. Não é fácil acordar na manhã do seu sexagenário aniversário - porém, com os dedos grossos eu abotôo a camisa, com todo cuidado para não precisar de mãos desconhecidas sobre o meu colarinho. Na janela, sinto o vento e o barulho das crianças no jardim – no vai e vem tão infantil dos jogos de betes. Com a ordinária solidão de uma sala de estar acompanhado de móveis e folhagens sou guiado pelos passos leves. Ainda com uma xícara de chá pela metade – escuto meu nome ser chamado no portão – a audição infalível acerta – Luisa.

- Bom dia, o senhor dormiu bem?

- Dormi como todas as noites – deitado e com os olhos fechados. A minha impaciência não era nada velada – creio que ela percebia.

- Hoje vamos sair.

Neste momento quis não acreditar na voz feminina do tempo, deixei-me levar pelos prazeres quase sepultados nos últimos anos. A minha fama de rabugento, mostrou força no meu pedido.

- Luisa, por favor, me espere na porta da sala, vou terminar meu chá com tranqüilidade. Senti-a caminhar sem pestanejar em direção a porta da sala. Estar acompanhado por uma jovem dentro de casa não era uma tarefa fácil, a minha desconfiança vintém era herança da falta de convivência e dos reflexos ausentes provocados pela idade. Sai da cozinha e atravessei a casa – antes de sair, mexi no tabuleiro de xadrez. A efusividade ganhou campo e eu com meus sessenta anos soltei em plenos pulmões – vamos de uma vez. Foi à primeira vez em muito tempo que alguém ouvia uma manifestação contundente minha. Escutei as passadas fortes de Luisa e aos poucos a sua voz doce, contornando vogal por vogal naquela oratória provinciana de vida e adjetivada de momento.

- Seu Ricardo, não sei como descrever tudo o que sinto ao vê-lo tão bem. Escutar uma afirmativa desta era confirmar que a voz feminina do tempo estava realmente incorreta – cândido sorri – peguei a minha pequena mala e me dirigi a porta. Luisa me abraçou e pude sentir o aroma do seu pescoço roçando o meu queixo liso.

Durante o percurso apenas queria esquecer a minha implicância com o mundo que eu conhecia há pouco tempo – para dizer a verdade, há ilustríssimos poucos momentos. Luisa falava entusiasmada da minha melhora – dizia da recuperação rápida e da minha postura como um homem. Aos poucos, eu não sabia muito bem o que pretendia aquela jovem – a minha saga vintém se mostrava mais rígida. Com a demora do percurso me eximi de silêncio – pouco a pouco voltei a minha juventude e principalmente a época em que eu pude ser mais eu mesmo. A desculpa não poderia ser maior, trabalhava em um cartório e não posso reclamar muito da minha posição crítica em relação ao mundo, aprendi no convívio com escrivões, advogados e juizes. Quando chegava perto da minha maior ausência – fui abruptamente interrompido por Luisa.

- Descemos aqui senhor Ricardo.

A estranheza de escutar a pronúncia do meu nome após algum tempo, deflorava uma ânsia de sair correndo e nunca mais voltar – nem mesmo que os passos fossem atropelados por algum motorista em seu horário de almoço. Sentia a camisa esmagar o meu pescoço – logo hoje que eu tinha fechado botão por botão com todo cuidado. Ela quis pegar em meu braço, me desvencilhei e calei a boca. Escutava um silêncio que se misturava com o barulho de nossos passos – um tanto sinuosos. Já começava a ficar entediado com toda aquela andança.

- Aqui.

Ela falou de um jeito até como nunca tinha falado em todos os nossos encontros. Parado como estivesse com um precipício a minha frente – fiquei. Insistindo ela repetiu o meu nome.

- Senhor Ricardo sabe em qual lugar estamos?

- Não – A resposta monossilábica enfática contrariava o meu posicionamento irônico característico e todo aquele meu espasmo alegre de pouco tempo. Fiquei com a insolente vontade de dizer – se eu soubesse você não estaria me perguntando cretina.

- Estamos no cemitério.

O começo do final, isso que senti ao escutar a afirmativa da localidade onde nos encontrávamos. Entre a fraqueza de não falar nada, optei pela força de poucas palavras – leia para mim.

- O senhor tem certeza? A sua voz desconfiada denunciava que mesmo sendo a pessoa que mais convivia comigo nos últimos tempos, seu receio ainda existia.

- Luisa, pode ler. Após instantes no agouro do sol escaldante ela começou a leitura.

- Maria Rute Souza – 15 de março de 1945. Em um grito gutural a interrompi.

- Chega.

Maltratar sentimentos é descaso com um coração, no meu caso eu estaria maltratando vários corações naquele momento. Optei por saber sobre o epitáfio da pessoa que foi o meu olhar por mais de três décadas. Se eu não poderia ler, não queria que ninguém mais lê-se para mim. Pode parecer estranho, mas saber da morte não interessaria, pois para quem sempre viveu no escuro, ela é apenas mais uma palavra – com denotação eterna da ausência.

O clima no caminho de volta entre eu e Luiza foi horrível, nunca torci tanto para chegar em casa. Quando ela me deixou na porta da sala, e se despediu, tive a sensação de nunca mais vê-la. Com a vaga sensação de liberdade, caminhei até o banheiro para mais um banho. Minhas mãos gastas alisavam o meu rosto – agora um pouco mais honesto. Deitado na cama escuto a televisão e na chatice da programação penso em pegar o telefone e ligar para Luisa – no mínimo me desculpando. Desisto ao perceber o horário – deito de bruços para acomodar a minha coluna sexagenária. Inebriado pelos sonhos deixei-me de me preocupar, pois sempre vi o mundo pelos olhos dela – agora, começo senti-los pela presença de Luisa.