sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O último voo do flamingo


No pêndulo as horas trafegam objetivas para assinalar a certeza de mais um dia. Por mais que as incertezas não sejam planas, e a despedida uma boa ação de que tudo está no caminho natural – desejado e forte. Desperto com a sensação de estar com as pálpebras insolentes. A certeza veio após passar com os calcanhares amarelos sobre a passadeira de camurça – presente de uma amiga finada. Com a estupidez matinal, não consegui urinar dentro do vaso sanitário, com um pedaço de pano umedecido de álcool esfrego as juntas do piso e azulejo – esfolando minhas mãos na parede. O sangue rubro goteja em direção aos meus pelos do punho. Abro o registro, conto mentalmente até dez e entro no box – inclino a cabeça para trás, deixo o rosto ser acometido pela brutalidade da água. Como velhos artesãos suecos pegam a lâmina para cortar a barba, tento começar. As mãos tremulas denunciam o meu receio em me barbear. A falta de costume se mostra evidente, sinto comprimir entre o indicador e o polegar o cabo plástico do aparelho. Lá na cozinha o radinho sintonizado em uma estação local informa sobre algumas denúncias da prefeitura local e os resultados dos jogos da sena e da loteria federal. Infelizmente não foi hoje que pude ganhar algo – jogo há mais de doze anos nos mesmos números e desta vez não tive nenhum dos meus algarismos sorteados. Com os dedos úmidos massageio as laterais do rosto e retiro a esfoliação característica do barbear. Ainda em pé frontal ao espelho, sentindo os pés envoltos pelas gotículas de vapor espalhadas pelo chão escuto a chamada para a previsão do tempo na rádio – penso que estas descrições de satélites não são sempre verdadeiras. A voz feminina informa sobre o tempo parcialmente nublado, esta imagem logo se descaracteriza pela lembrança da semana passada quando o tempo foi exatamente o contrário ao informado. Quando lembro que hoje não pode chover, sinto uma vontade terrível de insultar os céus. Meu nome é Ricardo Souza e hoje completo sessenta anos – depois de muito tempo em casa, sairei para um passeio, se sem chuva, melhor. Na cozinha o canário na gaiola cantarolava e parecia mais astuto que as delongas do noticiário. Logo o telefone vai tocar – vou disfarçar a estranheza. Ultimamente é assim que me sinto. Ela vai chegar e querer me dar atenção, como fosse eu fosse realmente merecedor. Não é fácil acordar na manhã do seu sexagenário aniversário - porém, com os dedos grossos eu abotôo a camisa, com todo cuidado para não precisar de mãos desconhecidas sobre o meu colarinho. Na janela, sinto o vento e o barulho das crianças no jardim – no vai e vem tão infantil dos jogos de betes. Com a ordinária solidão de uma sala de estar acompanhado de móveis e folhagens sou guiado pelos passos leves. Ainda com uma xícara de chá pela metade – escuto meu nome ser chamado no portão – a audição infalível acerta – Luisa.

- Bom dia, o senhor dormiu bem?

- Dormi como todas as noites – deitado e com os olhos fechados. A minha impaciência não era nada velada – creio que ela percebia.

- Hoje vamos sair.

Neste momento quis não acreditar na voz feminina do tempo, deixei-me levar pelos prazeres quase sepultados nos últimos anos. A minha fama de rabugento, mostrou força no meu pedido.

- Luisa, por favor, me espere na porta da sala, vou terminar meu chá com tranqüilidade. Senti-a caminhar sem pestanejar em direção a porta da sala. Estar acompanhado por uma jovem dentro de casa não era uma tarefa fácil, a minha desconfiança vintém era herança da falta de convivência e dos reflexos ausentes provocados pela idade. Sai da cozinha e atravessei a casa – antes de sair, mexi no tabuleiro de xadrez. A efusividade ganhou campo e eu com meus sessenta anos soltei em plenos pulmões – vamos de uma vez. Foi à primeira vez em muito tempo que alguém ouvia uma manifestação contundente minha. Escutei as passadas fortes de Luisa e aos poucos a sua voz doce, contornando vogal por vogal naquela oratória provinciana de vida e adjetivada de momento.

- Seu Ricardo, não sei como descrever tudo o que sinto ao vê-lo tão bem. Escutar uma afirmativa desta era confirmar que a voz feminina do tempo estava realmente incorreta – cândido sorri – peguei a minha pequena mala e me dirigi a porta. Luisa me abraçou e pude sentir o aroma do seu pescoço roçando o meu queixo liso.

Durante o percurso apenas queria esquecer a minha implicância com o mundo que eu conhecia há pouco tempo – para dizer a verdade, há ilustríssimos poucos momentos. Luisa falava entusiasmada da minha melhora – dizia da recuperação rápida e da minha postura como um homem. Aos poucos, eu não sabia muito bem o que pretendia aquela jovem – a minha saga vintém se mostrava mais rígida. Com a demora do percurso me eximi de silêncio – pouco a pouco voltei a minha juventude e principalmente a época em que eu pude ser mais eu mesmo. A desculpa não poderia ser maior, trabalhava em um cartório e não posso reclamar muito da minha posição crítica em relação ao mundo, aprendi no convívio com escrivões, advogados e juizes. Quando chegava perto da minha maior ausência – fui abruptamente interrompido por Luisa.

- Descemos aqui senhor Ricardo.

A estranheza de escutar a pronúncia do meu nome após algum tempo, deflorava uma ânsia de sair correndo e nunca mais voltar – nem mesmo que os passos fossem atropelados por algum motorista em seu horário de almoço. Sentia a camisa esmagar o meu pescoço – logo hoje que eu tinha fechado botão por botão com todo cuidado. Ela quis pegar em meu braço, me desvencilhei e calei a boca. Escutava um silêncio que se misturava com o barulho de nossos passos – um tanto sinuosos. Já começava a ficar entediado com toda aquela andança.

- Aqui.

Ela falou de um jeito até como nunca tinha falado em todos os nossos encontros. Parado como estivesse com um precipício a minha frente – fiquei. Insistindo ela repetiu o meu nome.

- Senhor Ricardo sabe em qual lugar estamos?

- Não – A resposta monossilábica enfática contrariava o meu posicionamento irônico característico e todo aquele meu espasmo alegre de pouco tempo. Fiquei com a insolente vontade de dizer – se eu soubesse você não estaria me perguntando cretina.

- Estamos no cemitério.

O começo do final, isso que senti ao escutar a afirmativa da localidade onde nos encontrávamos. Entre a fraqueza de não falar nada, optei pela força de poucas palavras – leia para mim.

- O senhor tem certeza? A sua voz desconfiada denunciava que mesmo sendo a pessoa que mais convivia comigo nos últimos tempos, seu receio ainda existia.

- Luisa, pode ler. Após instantes no agouro do sol escaldante ela começou a leitura.

- Maria Rute Souza – 15 de março de 1945. Em um grito gutural a interrompi.

- Chega.

Maltratar sentimentos é descaso com um coração, no meu caso eu estaria maltratando vários corações naquele momento. Optei por saber sobre o epitáfio da pessoa que foi o meu olhar por mais de três décadas. Se eu não poderia ler, não queria que ninguém mais lê-se para mim. Pode parecer estranho, mas saber da morte não interessaria, pois para quem sempre viveu no escuro, ela é apenas mais uma palavra – com denotação eterna da ausência.

O clima no caminho de volta entre eu e Luiza foi horrível, nunca torci tanto para chegar em casa. Quando ela me deixou na porta da sala, e se despediu, tive a sensação de nunca mais vê-la. Com a vaga sensação de liberdade, caminhei até o banheiro para mais um banho. Minhas mãos gastas alisavam o meu rosto – agora um pouco mais honesto. Deitado na cama escuto a televisão e na chatice da programação penso em pegar o telefone e ligar para Luisa – no mínimo me desculpando. Desisto ao perceber o horário – deito de bruços para acomodar a minha coluna sexagenária. Inebriado pelos sonhos deixei-me de me preocupar, pois sempre vi o mundo pelos olhos dela – agora, começo senti-los pela presença de Luisa.

Nenhum comentário: