sábado, 22 de março de 2008
Café sem açucar
É cedo, à campainha do apartamento 27 do edifício Pablo Picasso tocou. Angelita em passos espaçados chegou até a porta. Ao abrir deparou-se com a figura de seu ex-marido Antônio, que vestia uma camisa branca e um blaser preto um tanto desbotado. Os olhos se encararam sem nenhum sentimento decorado, fazia exatamente 14 meses que não se viam.
__ Angelita, perdoe-me pela hora, mas passava por perto e não poderia deixar de vir visitá-la. Algum problema?
__ Não, fora meu espanto e palidez matinal, tudo normal. Entre! Enquanto faço a higiene bocal, sente-se e leia o jornal, aliás, atente para a crônica do Cony.
Sem muito jeito Antônio folhava o jornal, e timidamente olhava os cantos daquela sala, as costuras do sofá, e as pinturas dos quadros adquiridos em passeios pelo litoral catarinense. Tudo era tão nada perto das sensações daquelas leituras infundadas de manchetes exageradas.
Impaciente pela demora da ex-esposa, colocou-se de pé, frente à porta de vidro da sacada. Na praça em frente do Pablo Picasso crianças davam o tom daquele começo de manhã. As folhas secas da falta de chuva, os gritos das mães desesperadas com a leveza dos dedos na boca, após segurar nos ferros de suporte de balanças contaminadas de monóxido de carbono da cidade.
Seus pensamentos dispersos entre o lúdico daquela praça e as lembranças da sala de estar daquele apartamento misturavam-se ao odor da sensação de ver a parede pintada de cor diferente, de o tapete ter outro desenho, de perceber que o cesto de vimi do gato persa não estar mais próximo a parta de acesso ao corredor de acesso aos quartos.
A pergunta mais coloquial em seu interior era a mais simples de todas, será que Angelita tinha arrumado um outro namorado, marido, ou caso. As interrogações se aguçaram em seu instinto masculino, mas o limite das suas duvidas esbarrava no ficcional de não transparecer o seu frágil momento a ex-companheira. Antes de esbarrar em mais uma duvida traidora, Angelita retornou da sua higiene matinal. Ostentava um penteado cheio de glamour, e tinha seus olhos contornados por um lápis mediano, que deixava aqueles lindos olhos castanhos claros sobressaídos.
__ Desculpe a demora, mas resolvi me arrumar para ir ao trabalho. Vou preparar um café na cafeteira, mas somente tenho leite em pó, aceita?
__ Logicamente, faz algum tempo que deixei o meu egocentrismo exonerado no passado, atualmente importo-me muito mais com o momento, com as lembranças, com o despertador que a companhia me convoca.
__ Interessante, percebo o quanto você mudou, pelo menos seus discurso, hoje extrapola a sua pessoa. Sabe, percebo o quanto é patético essa síndrome de mudança que tentas habituar a si mesmo, acredito que a aceitação de tomar um café com leite em pó é meramente factual com a tua intenção em tentar descobrir o que tuas insolentes perguntas intimas o fazem.
Posso estar totalmente enganada, mas quem nunca enganou-se, ate mesmo Aristóteles talvez tenha enganado seus alunos, Maquiavel tenha enganado a rainha, ou você tenha enganado as suas famigeradas angustias.
Tenho vontade de gritar, olhar pela vidraça da sacada e dizer bem alto: “Crianças, cuidado, o amanhã pode não reservar nada além de ressentimento”. Seria a apoteose da decadência moral da minha verdade, que ficou escondida tantos anos entre os mesmos lençóis que você. Antônio tentou ir além do dedo riste, mas a ex-esposa, em tom agressivo, esbravejou, não diga nada, tudo que tem direito é não dizer nada, calado você vai sentir o quanto o silencio é penoso para quem tanto fez isso para motivar os outros.
Eu deveria ser severa e castiga-lo com o abismo da dúvida, mas a minha bondade matinal não foi esquecida, após estas breves verdades, posso entre uma xícara e outra de café falar um pouco sobre o apartamento, os quadros, as paredes pintadas de um tom mais azul anil.
__ Angelita, prefiro não saber nada, a pior maneira de pagar os meses e toda a balburdia apresentada é com esta sofreguidão de ver o quanto esta no mesmo patamar que estive quando sai de casa. Não acredito em frases e discursos feitos, mas hoje percebo quanto o mundo para você mudou. A cor dos seus olhos é brilhante, a forma do seu corpo é atraente e você é uma mulher que tem usa sua fala para pressupor muitas coisas, entre elas o asco das minhas atitudes.
__ Muito grato pelo café, perdão pela repentina visita logo cedo. Um bom trabalho e um dia nos falamos.
A saída da pequena mesa da cozinha foi uma forma sem sentido para as pretensões dos dois. Antônio deixava aquela cena dolorido na mudança proporcionada pela tentativa de reaproximação de Angelita. Enquanto Angelita percebia o quanto ainda sentia seu coração palpitar por aquele sujeito prepotente de ações muitas vezes doentes.
O aperto de mãos na despedida na porta significou que os olhares culpados e carregados de solidão na chegada da visita matinal eram agora despretensiosos e leves de culpas. A única questão que ficaria perdurada talvez para sempre fosse que tão quão ordinária eram estes sentimentos impostos.