quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

O sol de Nara





Quando chegou, mal teve tempo de perceber o recado preso em um imã na geladeira. Apressadamente passou pela cozinha, não gostava de entrar por ali, somente a fazia quando estava sem a chave da porta da sala. Já na sala reparou no desbote das folhas da avenca, mas não fez nada naquele momento, preferiu ir até o quarto e descansar o corpo maltratado do cansaço. Desprendeu o braço pálido do corpo, esticou a mão direita para pegar o travesseiro e atirou a bolsa para aquele espaço. Jogou-se na cama, na necessidade de descansar seu rígido corpo. Ali no quarto ela sentia a luz que entrava entre as persianas e atingia a sua branca e bonita perna direita. Sem necessidade de pedir licença para quem não iria chegar, resolveu puxar a saia mais para cima e deixar as pernas em locais pouco navegadas de sol.
Ali deitada e reclusa da movimentação e modernidade da vida lá fora, pensou mais friamente nas condições que extrapolam a situações do coração.
Na noite passada, durante a festa de aniversário de Verônica, percebi que eles conversavam e se entreolhavam. Isso me deixou profundamente chateada. Enquanto eu pedia mais uma dose de bebida ao garçom, somente para criar um certo desconforto a ele, não demorou mais que dez segundos para ele interromper a conversa e vir até a minha direção. Chegou sem muito pensar e disse:

- Ela é uma chata!

Eu me coloquei a rir demasiadamente da situação, vê-lo ali na minha frente e escutar aquela frase não tinha significado mais significativo para o momento.

- Não se preocupe. Eu sempre a achei chata, mas agora que escuto de você, ela é mais chata ainda.

Sentido com a situação e na esperança de reconquistá-la, se pôs a falar da esperança de fazer renascer os dias em que foram felizes.

- Sabes bem que eu não passei uma fase boa. Mas quero que saibas que agora estou bem. A quero muito próximo de mim.

Eu engasguei. Não acreditava que aquele homem que por vezes eu fiz sofrer, estivesse ali, com um ar de consternado pedindo para ficar próxima de mim. Olhei para meus cotovelos trêmulos, soltei os cabelos e os puxei bem para amarrá-los novamente. Fiz isso para conseguir contornar a coragem e falar:

- É. Então vamos para meu apartamento.

Não dei tempo de resposta a ele e lhe disse:

- Agora!

Anos mais tarde eu descobri que aquela noite não foi a nossa volta, nem tão pouca a nossa retomada definitiva. A pressa de encontrar nele alguém que iria me fazer bem, esbarrava na falta de sensibilidade dos meus sentimentos. Talvez fosse tudo culpa da urgência que eu tenho em vivenciar a natureza das coisas. Jamais me submeti a ficar nas noites de sábado sentada no sofá assistindo um filme qualquer e entre uma cena mais parada e outra confinar diálogos assim:

- Não conta que nunca assistiu filmes deste diretor?

- Diz que está de brincadeira comigo?

- Barbaridade, o que fizeram com você na sua vida?

Essas perguntas cretinas afugentavam a minha pressa, não poderia ficar reclusa a perguntas estúpidas como estas em uma noite de sábado. Eu preferia ficar atenuada com as cenas e aproveitar o momento para recriar um romance fílmico ali no sofá da sala.
Porém a minha caretice e falta de coragem não permitiam eu agarrá-lo pela gola da camisa e começar a subtrair as vontades. Ficava na minha eterna culpa de aceitar tudo que acontecia.
Em uma noite de agosto ele chegou todo molhado, a sua camisa pólo azul estava grudada no corpo, as costas faziam uma espécie de “v”, salientes pareciam asas de um anjo querubim.

- Essa chuva chegou depressa, eu jamais iria imaginar que um guarda-chuva me salvaria neste começo de noite. Enfim, consegui comprar uns chocolates e um vinho, não é dos bons, mas vai servir para evitar o resfriado. Colocou-se a sorrir. Era um sorriso com chiados de verdade.

- Seu bobo, vinho serve para esquentar, para gripe é caipira que é bom. Pelo menos foi o que restou da tradição familiar, meu avô sempre defendia esta tese.

Colocaram-se a sorrir. Eram sorrisos sinfônicos em par. Em par eles fizeram de tudo naquele sábado chuvoso de agosto. As mãos que em algumas noites eram duas, transformaram-se em quatro, as bocas que eram apenas uma para saciar o chocolate, somaram-se para trair o desejo e atrair o momento. Os corpos envoltos, não pareciam nada, pareciam corpos envoltos de desejos.
O som da velha vitrolinha, herança da família dela tocava um vinil da Nara Leão – aquela voz doce da Narinha expressava de modo genial a composição do velho Chico.

Quando a noite enfim lhe cansa, você feito criança, pra chorar o meu perdão, qual o quê! Ele retrucou.

- Não gosto deste verso, não que não goste, neste momento aqui não posso gostar. Prefiro o começo e começou a cantarolar em meu ouvido – com açúcar e com afeto, fiz seu doce predileto, pra você parar em casa. Antes de terminar o verso, mordeu meu lábio inferior e me beijou com intensidade. Senti a textura do beijo.

Depois de tantas vezes juntos não lembrava da ultima vez que tínhamos passado uma noite tão agradável juntos. Não tive oportunidade de lhe dizer boa noite, nem outras frases mais, sentia que naquela madrugada eu poderia esquecer a minha falta de coragem em pronunciar algo. Porém ele já dormia, respirava forte e nem a chuva que fortemente atingia o vidro da janela do quarto impedia aquele som. O abracei forte, feche os olhos e não lembro de ter sonhado.

- Amor, cadê você?

- Você está no banheiro?

Era 7:18 de domingo, o despertador já tinha anunciado o acordar. Envolto ao edredom com aroma da noite, estiquei o braço, afastei as taças de vinho e puxei a minha carteira de cigarros.

- Ufa, tenho mais um.

Suspirei aliviada, retirei o travesseiro dele do lugar, juntei ao meu e me encostei. Enquanto eu tragava tranquilamente aquele solitário cigarro, sentia em meu copo o peso, a necessidade boa que aquela noite tinha me provocado. Doía-me esta história de ficar tonta com os meus sentimentos mais usuais.

Antes de terminar o cigarrinho ele reapareceu com um sorriso nos lábios e com a o rosto suado disse:

- Gosto da Nara Leão, mas confesso que ouço mais a Fernanda Takai. A voz delas é muito parecida. Não acha?

Meu silêncio se fez vitrine. E ele emendou:

- Não acredito que você ainda não percebeu?

- Eu vou trabalhar!

Mas hoje é domingo, não é?

- É sim! Mas certas vezes eu trabalho no domingo.

Beijou-me e saiu para trabalhar.

Fiquei ali ilhada nas fragrâncias daquele quarto. Retirei o segundo travesseiro e voltei a deitar meu corpo. Em poucos minutos dormi.

Hoje eu sei que desde o inicio eu tinha certeza que aquele amor era um vício de ambos, não estávamos ali para preencher a vida um do outro, mas para nos limitarmos ao momento. Ele com suas perguntas sem respostas, eu com a urgência momentânea. Na verdade eu não sei muito bem a razão de voltar à tona destes acontecimentos.
Preso no imã fixo da geladeira, escrito em papel de uma agenda velha, ficou escrito por ele: se alguém perguntar por mim, diz que fui por aí.
Tudo culpa da Nara Leão, tudo culpa minha. Penso em começar a colocar a pálida e não tão bonita perna esquerda no sol.