domingo, 13 de abril de 2008

Um novo lugar




A voz embargada dos soluços itinerantes daquela tarde não permitiam falar com muita clareza, logo naquela tarde resolveu gravar alguns versos soltos e palavras mofadas pelo tempo em que estiveram guardadas na espera de surtir efeito.
Discretamente fechou as janelas, correu a persiana clara da sala e sentou-se no sofá coberto por cetim manchado de coca-cola no braço esquerdo. Pegou o gravador, um modelo básico, mas suficiente para armazenar e reproduzir aquelas singelas e honestas palavras derivadas das noites em que os momentos demoraram a passar, e até os pés vestidos por meias de algodão incomodavam.

Sozinha na sala, sentada frontal a mesinha de centro, que tinha um relógio de ponteiros,
ganho na renovação do seguro residencial, mas que no momento estava com o ponteiro dos segundos desregulados, um cinzeiro carregado com cinzas dos cigarros tragados naquele dia, uns prontuários médicos guardados para futuras consultas, e o controle remoto do televisor.
Neste espaço amplamente ocupado por diversos objetos carregados de significados, conseguiu colocar o gravador em um dos poucos espaços livres da mesinha e permitiu-se a falar. A dificuldade maior seria ultrapassar a barreira sintomática dos soluços, a cada palavra proferida, parecia a garganta não permitir o termino correto da frase. Aquelas colocações pareciam ser ditas para corromper o sarcasmo da dor, porém isso não poderia ser verdade, a dor daquele momento, foi martirizada por muitos momentos em que resolveu ficar quieta, e deixou os seus anseios serem mais medrosos que a verdade.
Depois de muito relutar contra o soluço, lembrou dos conselhos tradicionais do senso comum e resolveu tomar um copo de água com açúcar. Ao primeiro gole o trato vocal devorou o doce, escandiu a dor, difamou a solidão, parecia que ali nasceria um novo momento, uma nova divisão do planejado.
Voltou ao sofá, mas desta vez optou por sentar-se na margem direita, oposto a mancha de refrigerante. A irrisória velocidade das palavras, contornou os soluços das gravações, que tornaram-se galhofas ao serem escutadas.
Na realidade aqueles espasmos de sorrisos foram o suficiente para ela entender que a vida muitas vezes não tem o contorno que tanto as pessoas a atribuem, por muitas vezes, perdida na busca pela perfeição, por tentar encontrar o tom certo para suas palavras, perdeu as oportunidades de falar, de escancarar a solidão e tentar jogá-la na lixeira mais próxima.
Desgravou todo o conteúdo registrado durante a crise de soluços, resolveu começar novamente, repetindo-se, não alterando o conteúdo das palavras, a coesão das frases.
E, com a suavidade dos sentimentos divididos com o silêncio, pôs-se a falar sobre a casualidade bela da vida, que entre tantas condições belas da vida, poucas tem o sentido, o peso e a plasticidade da casualidade.
Continuou por mais de trinta minutos a discursar sobre a beleza da casualidade, depois viria o viver que ultrapassa o abstrato do platônico e perde-se nas condições prazerosas do olhar.
Quando passou a perceber o olhar sincero e franciscano perante algumas pessoas da sociedade, que são mais preocupadas com a cor do vestido da mulher ao lado, acreditou que mesmo com a voz soluçante, consegue ser mais atrativa para reconhecer a vida, que quando permitida, acontece em qualquer esquina, ou cômodo de algum apartamento.
O copo de açúcar passou a ser o coadjuvante mais necessário em suas leituras e interpretações do mundo.
A mesinha de centro da sala passou também a hospedar um copo e um punhado de açúcar seco, restos dos últimos instantes a partir daquela tarde.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom!
passarei sempre por aqui.

abraços.

Anônimo disse...

A suvidade do ambiente descrito, os detalhes da sala e uma personagem em conflito com os sentimentos, são adoçados pelo açucar do conto e a textura desenvolvida pelo autor.

Parabéns!

Paula/ Santos