sábado, 16 de janeiro de 2010

Feliz Aniversário



D
esperto com a ode do trânsito, nas esquinas a noite ainda tem seus últimos instantes, nas vergonhas moribundas que avisto da janela do quarto. A maquiagem do dia começa a ensandecer no condomínio, a casa de máquinas do elevador ativa o segundo trapézio. O latido do cachorro da senhora aposentada ainda não se evadiu. Complicado é agüentar o pulha do menino que resolve botar o apartamento abaixo quanto seus pais viajam. Ligo a televisão, o dedo inquieto alicia todos os canais do mundo, depois de eternos quatro minutos, desligo. Ainda arrastado pelos olhos empedrados, desafio as pernas para chegar até a porta. Os enfeites de natal ainda estão sobre a mesa de canto, por caridade a minha mãe, ainda deixo ali, mesmo sabendo que o dia de reis já passou há quase dez dias.

Coloco uma camiseta surrada, acendo um cigarro e atravesso a saleta. Com a mão deslizando no trinco redondo, lembro da placa proibitiva de cigarro no condomínio. Sem perder o embalo das pernas, meia passada para trás – com um leve toque apago o cigarro entre o indicador e o polegar. No trapézio que é responsável pela taxa abusiva de condomínio a rádio não ofusca a trepidação até o térreo. Queixo roçando o peito, contrariando recomendações do ortopedista, passos longos para alcançar o jornal de domingo. Bicho grilo, na portaria tomando seu copo de café, penso em soletrar alguma coisa, mas melhor mesmo é ficar no gestual.
Já dentro da saleta, sento para ler o jornal, e somente depois da leitura do caderno de esportes, lembro do meu aniversário hoje. Acendo um cigarro, volto para o quarto e ligo a televisão. Ainda sem ser abduzido pelas sinfonias dos outros, volto a dormir, balbuciando um feliz aniversário.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Climatério


O despertador de tic-tac do relógio de corda da tia avó findou o silêncio na casa. Nem mesmo o sorrateiro galo progenitor do galinheiro da família se livrou do tilintar do metal sucumbindo pelo ponteiro de chumbo. Abrindo o bico engasgou em um cacarejar que contradizia a modernidade. Os postes ainda laranjados no incandescente sofriam com a claridade e os primeiros raios de sol. Ao colidir a cabeça com o vaso da samambaia, ficou perplexa com as pontas secas e ali penduradas, como fossem troféus de quem as esqueceu. No tanque encheu de água um pequeno bule com o gargalo amassado, e deixou pingar - gota a gota do líquido que escorria do alumínio e deslizava na cera até formar a mácula de gordura. Regando as samambaias, tinha uma oratória que aprendeu na terapia de casais – e tratava de interpretar o papel do homem, esculachando a folhagem puxando orgasticamente as folhas secas.

Ajoelhou-se com um pano nas mãos e começou a esfregar as máculas que há pouco tinha sido depositada ali. No tempo de casada jamais precisou se ajoelhar naquelas condições – fazendo a sentir o gosto de voltar para o apartamento de dois quartos na região central da cidade. Sorrateira foi até a janela fitar o galo de penas rubras – que não cacarejava mais.