sábado, 26 de abril de 2008

Açucar na toalha da mesa



O inverno chegou. As roupas precisam serem lavadas para retirar o aroma das estações passadas, que a este momento estão impregnadas do cheiro do guarda-roupa.
Sem tricolejar muito, ergueu um dos sapatos, para verificar o real estado da graxa. O solado está deteriorado, a cola soltou-se das laterais e com os dias umidos do inverno a possibilidade de ficar com a sola separada do pé é alta. Não seria uma ação conveniente, possivelmente seu pé exposto no chão ganharia uma friagem mensurável com a dilatação do seu corpo franzino. A resposta do chão com uma temperatura inferior a 3 graus seria prejudicial, um choque quase térmico.
A coloração roxa denunciaria que aquele corpo foi maltatado pelo frio insolone em castigar os mais desavisados sobre a baixa temperatura nas calçadas geladas da cidade.
O céu plúmbeo de final de tarde, transição para uma noite sem estrelas, era convidativo para ir perambular e ler as manchetes da bancas de jornal.
Mas, aquelas manchetes policiais expostas eram um atentado violento sobre suas idéias para aquele dia. Colocou-se a mudar o itinerário e resolveu ir parar em uma banqueta de lanchonete, a fome matinal o fazia salivar excessivamente por um pão quente coberto de manteiga e uma fatia de queijo. Ao fundo do balcão uma das atendentes trocava incessantes olhares com um sujeito, que vestia uma camisa de cor forte, uma coloração próxima de turquesa. Os dedos das mãos eram ocupados por anéis que o faziam parecer ser um ladino típico. A voluptuosidade das trocas de olhares não o permitia lembrar do pão com manteiga e uma camada fina de queijo.
Moça, por favor meu pão!
Ah, sim! Aqui esta senhor. Desculpe a demora.
Um pedido de desculpas com jeito de querer ultrapassar as fronteiras daquele balcão e estar perto do sujeito ladino de camisa de cor forte. Enfim, passados olhares incessantes e pouco mais de dez minutos o delicioso pão chegou até a suas mãos. Veio em um prato de porcelana, que tinha um tracejado azul, tentou ler o que estava escrito, mas o tempo apagou. Enquanto saciava a sua fome matinal é fitado novamente pela atendente, uma menina, na faixa dos seus 19 anos, que insinuava cenas para o homem da mesa. Em um dos raros momentos que olhou para trás, percebeu que o homem era bem mais velho que a bela atendente e no bolso frontal da camisa carregava uma carteira de cigarro, pareceria ser Marboro.
Saciou a vontade. Levantou, pagou a conta do pão com manteiga frito e uma camada fina de queijo. E, voltou a caminhar, sem itinerário convicto. Sua única certeza era não perder a atenção nas manchetes de jornais e nem imaginar mais uma fome proporcionar uma cena como a presenciada na lanchonete.
Antes de retornar para casa, precisou abrir seu guarda-chuva, uma leve garoa começava engrossar. A temperatura caiu absurdamente, aproximava-se dos três graus, porém a sensação térmica era infinitamente maior.
O desbote do sapato com a chuva pareceu brilhante. E, a cola, não soltou mais, não foi desta vez que sentiu seu pé encostar o molhado do chão frio.
Quis correr para voltar a frente da lanchonete e presenciar aquela cena não tão interessante, apenas condizente com aquela tarde. Mas, antes de sair em passos apressados lembrou da falta de cola no sapato.

domingo, 13 de abril de 2008

Um novo lugar




A voz embargada dos soluços itinerantes daquela tarde não permitiam falar com muita clareza, logo naquela tarde resolveu gravar alguns versos soltos e palavras mofadas pelo tempo em que estiveram guardadas na espera de surtir efeito.
Discretamente fechou as janelas, correu a persiana clara da sala e sentou-se no sofá coberto por cetim manchado de coca-cola no braço esquerdo. Pegou o gravador, um modelo básico, mas suficiente para armazenar e reproduzir aquelas singelas e honestas palavras derivadas das noites em que os momentos demoraram a passar, e até os pés vestidos por meias de algodão incomodavam.

Sozinha na sala, sentada frontal a mesinha de centro, que tinha um relógio de ponteiros,
ganho na renovação do seguro residencial, mas que no momento estava com o ponteiro dos segundos desregulados, um cinzeiro carregado com cinzas dos cigarros tragados naquele dia, uns prontuários médicos guardados para futuras consultas, e o controle remoto do televisor.
Neste espaço amplamente ocupado por diversos objetos carregados de significados, conseguiu colocar o gravador em um dos poucos espaços livres da mesinha e permitiu-se a falar. A dificuldade maior seria ultrapassar a barreira sintomática dos soluços, a cada palavra proferida, parecia a garganta não permitir o termino correto da frase. Aquelas colocações pareciam ser ditas para corromper o sarcasmo da dor, porém isso não poderia ser verdade, a dor daquele momento, foi martirizada por muitos momentos em que resolveu ficar quieta, e deixou os seus anseios serem mais medrosos que a verdade.
Depois de muito relutar contra o soluço, lembrou dos conselhos tradicionais do senso comum e resolveu tomar um copo de água com açúcar. Ao primeiro gole o trato vocal devorou o doce, escandiu a dor, difamou a solidão, parecia que ali nasceria um novo momento, uma nova divisão do planejado.
Voltou ao sofá, mas desta vez optou por sentar-se na margem direita, oposto a mancha de refrigerante. A irrisória velocidade das palavras, contornou os soluços das gravações, que tornaram-se galhofas ao serem escutadas.
Na realidade aqueles espasmos de sorrisos foram o suficiente para ela entender que a vida muitas vezes não tem o contorno que tanto as pessoas a atribuem, por muitas vezes, perdida na busca pela perfeição, por tentar encontrar o tom certo para suas palavras, perdeu as oportunidades de falar, de escancarar a solidão e tentar jogá-la na lixeira mais próxima.
Desgravou todo o conteúdo registrado durante a crise de soluços, resolveu começar novamente, repetindo-se, não alterando o conteúdo das palavras, a coesão das frases.
E, com a suavidade dos sentimentos divididos com o silêncio, pôs-se a falar sobre a casualidade bela da vida, que entre tantas condições belas da vida, poucas tem o sentido, o peso e a plasticidade da casualidade.
Continuou por mais de trinta minutos a discursar sobre a beleza da casualidade, depois viria o viver que ultrapassa o abstrato do platônico e perde-se nas condições prazerosas do olhar.
Quando passou a perceber o olhar sincero e franciscano perante algumas pessoas da sociedade, que são mais preocupadas com a cor do vestido da mulher ao lado, acreditou que mesmo com a voz soluçante, consegue ser mais atrativa para reconhecer a vida, que quando permitida, acontece em qualquer esquina, ou cômodo de algum apartamento.
O copo de açúcar passou a ser o coadjuvante mais necessário em suas leituras e interpretações do mundo.
A mesinha de centro da sala passou também a hospedar um copo e um punhado de açúcar seco, restos dos últimos instantes a partir daquela tarde.

sábado, 12 de abril de 2008

Palavras de Outrora: Costas cansadas

Palavras de Outrora: Costas cansadas

Costas cansadas

A cena

a calçada gelada
permite a famigerada
costela fria e doente
castigada das noites
mal dormidas


A cidade

as luzes refletem
imóveis sombras do calçamento
as pedras misturadas
na coloração preto e branco
moldam o reflexo
das vitrines perdidas
entre tantas desgraças


Os homens do outro lado da rua

espiam com sordidez
a serventia da vida
naquela noite fria
onde os sonhos
são tentativas nulas



O corpo

deitado o homem
parece um retrato
sem cor ou forma
sem cheiro ou gosto
de um prazeroso
prato de feijão



Algumas horas depois - Cena II

a calçada mais gelada
nua do silêncio da madrugada
é o purgatório
da deteriorada história


O Homem

o prazer simples
é sentir o gosto
de um mísero prato de feijão
e acordar