segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O fantasma do meu pai

Você deveria se comportar como um homem com mais de cinquenta anos – foi a pedinte frase que escutei sentando no Café de Copacabana naquela tarde.

A primeira impressão é que ela tinha invadido as minhas ideias no dia do meu aniversário.

Você deveria se comportar como um homem com mais de cinquenta anos – foi a pedinte frase que escutei sentando no Café de Copacabana naquela tarde.

A primeira impressão é que ela tinha invadido as minhas ideias no dia do meu aniversário.

O senhor costuma vir aqui?

Não. Rispidamente respondi.

Acendi um cigarro e encarei seus olhos. Ela balançou positivamente a cabeça e virou as costas para a mesa. Sozinho nos meus pensamentos fingia viver. Sou um desses homens com poucas horas e que consomem cigarros a revelia sem imaginar o amanhã.

Os meus maiores fantasmas carrego na ponta dos dedos ásperos, herança da infância sem a companhia dos meus irmãos.

Venha aqui. Berrando meu pai dizia – hoje você vai trabalhar sozinho. Ele é apenas um menino, retrucava a mãe.

Cala a boca. Ele vai aprender desde cedo a ser homem. Cabra macho igual ao pai dizia.

A interpelação franciscana da minha mãe rasga as minhas lembranças e debruça nas costas dos fantasmas que trago da infância.

Filho, feche os olhos sempre diante de um infortúnio. Eu poderia espremer os olhos no escuro, mas não podia me limitar a não escutar os palavrões e tilintares do piso de madeira que chegavam do quarto.

O primeiro fantasma real que trago da vida foi criado na minha própria infância no interior do Espírito Santo. Ainda com os joelhos ralados pelos jogos de bolinha de gude no campinho da Asaz Vera Cruz desconfiava que o filho da puta do meu pai surrava a minha mãe. Em casa ao olhar para o seu rosto eu via nos seus olhos a resposta – o mundo não é tão bom quanto seus olhos de menino querem ver.

Hoje recluso em estar com as pernas esparramadas neste café, permito ao tempo passar com seus vestígios. Nos dedos ásperos alianças não entram, nem mesmo quando minto que sou casado para alguma menina da “gare” em noite de samba na Lapa. Fumo enquanto a olho caminhando pelo café – mas não posso ser aquilo que nunca deixei de ser.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Tudo pela companhia


Tudo começou no exílio que parcelei em trinta e seis vezes no cartão de crédito. Ir pela primeira vez para a Inglaterra com mais de sessenta anos é acreditar que os fios espessos da barba branca não significam muito além da alergia da lâmina de barbear. A confusão de viagens em final de ano é uma explicação plausível para o meu tormento perante muitos cafés nos últimos trinta anos no Departamento de Ciências Humanas da universidade em que leciono. Todas as historietas cancioneiras sobre os Beatles escutadas acredito ter herdado destas conversas paralelas entre um intervalo e outro.

O voo atrasado fez com que minha chegada a Liverpool tivesse um gosto hitchcockiano – não parecia que chegara à capital beatlemaniaca. Depois do desgaste enfrentado na Wizz Air, tive um encontro com o suspense, que chegou com a presença de uma bela funcionária me acompanhando para uma saleta nos fundos do John Lennon Airport. Problemas na falta de um carimbo verde no visto da União Europeia – naquele inglês pesado, constatei que a fonética é ingrata com os estrangeiros. A desatenção foi no embarque em Lisboa, acredito que a prosa sobre a visita a Casa de Fernando Pessoa tirou a concentração do funcionário do aeroporto, que ao escutar minha fala no celular, perguntou sobre a admiração brasileira pelo poeta português – respondi em um tom ufanista que Ricardo Reis era o melhor.

- O gajo gargalhou:

Saramago também pensava assim. Lembrei de algumas críticas sobre o escritor português em relação ao seu comunismo, quantas vezes escutei isso na boca dos doutores e pós-doutores no departamento, creio que por isso, depois de Os Cus de Judas, passei preferir Lobo Antunes.

Com um exemplar da biografia dos Beatles em mãos, comprado em uma promoção de aniversário de uma grande rede de livrarias do Brasil, eu passava frio sentando em uma poltrona gelada com os sete graus marcados no termômetro com tracejado da foto de Lennon nos idos do lançamento de Imagine.

Mais tarde, depois de resolvido o entrave no aeroporto, estava com os pés no Cavern Quarter – ali, tudo parecia uma canção do Paul. Sedento por uma bebida, após arranhar a garganta para falar um inglês chiado para as informações turísticas, entrei no primeiro pub que o luminoso ardeu nos meus olhos. O canal local transmitia uma partida do Liverpool pelo campeonato inglês. Os diabos vermelhos segurando os canecos de cerveja e concentrados nas jogadas, juntamente com os funcionários. Como torcedor do esporte bretão aqui no Brasil e fanático por um clube sulista entendi o desprezo com a minha presença.

A aura tímida tem um sentido gauche nos meus recém completados sessenta e dois anos. Assim saí caminhando pelas ruas estreitas de Liverpool, segurando um mapa adquirido no Brasil – segui a via sacra. Minha coluna levemente arqueada carregava uma mochila com alguns botons de países, Rolling Stones e Beatles.

Na Metropolitan Cathedral, senti uma presença do tracejado niemeyer – adjetivo encontrado nas luzes azuis na decoração vespertina da igreja. Ali, pude sentir uma imensurável saudade da família que nunca tive. Papai e mamãe se foram há tanto tempo que a ausência deles já não é mais um vazio, mas a certeza de um encontro em breve. Certamente tivesse filhos, eles gostariam de conhecer a Albert Dock, comprariam roupas, tecnologia inglesa e tirariam fotos para mostrar para os amigos.

Topando com turistas do resto do mundo, comecei a sentir o exílio que carrego comigo, não estava com mais ideia e forças para continuar a jornada em Liverpool. Aqueles papos de departamento na universidade soavam muito contracultura para um sexagenário com acréscimos. Já imaginava o retorno, mesmo sabendo dos problemas que o caos aéreo provoca, tinha a certeza de que precisava voltar o quanto antes para casa. No país da rainha, além de tudo ser muito caro em relação ao salário de um professor universitário, quartos de hotel são sempre vazios e sem samambaias, não importa em que canto do mundo está. Solidões de quartos de hotéis são mais forte que as melodias do Álbum Branco – aforismo, diria um poeta que publicou o livro arrecadando dinheiro na porta da biblioteca pública da cidade do interior paranaense.

No táxi que me levava para o aeroporto na manhã seguinte decidi que iria visitar o Cavern Club – após pedir para o motorista soletrar na fala, descobri que o velho local do inicio dos Beatles não existia mais, que agora existe um Cavern Club Liverpool. Do outra lado da rua, na frente, tijolos originais do velho pub beatle bemolizavam os 292 shows ali. Algumas horas depois, seguia direto em um voo para a Espanha, iria passar uns dias na casa de uma boa amiga jornalista em Málaga.

Daqui pouco a menos de um mês iniciam-se as aulas na universidade e viajar para Liverpool será uma confissão para as tardes de Help no departamento.