Aos passos largos chegamos ao hall do hotel Tapajos. Depois de cruzar a frente do luminoso do antigo Cine Avenida, que estava com a fonte da letra C queimada. Passar no inicio de noite por ali, era uma espécie de eternidade, conseguida somente em filmes com James Stewart, apesar de gostar muito mais do expressionismo no gestual do cinema mudo. Frequentar um ambiente hoteleiro, não era comum para nós - aspirantes a profissão de jornalistas. Toda aquela mobília do século passado, muito bem ornamentada, nos deixava com um teor de vergonha. No posto de cicerone da pauta, avantajei os ombros sobre o balcão, antes de identificar-se ao atendente do hotel.
Nesta mistura de estímulo juvenil e falta de cadência profissional, percebi que Dario estava inquieto. Ciente do seu comportamento arredio, não hesitei em perguntar o motivo - ele balançou a cabeça para a ponta esquerda do balcão. Lá estava um dos jornalistas e mais pomposo escritor da cena política do estado. Não entendendo tal comportamento, perguntei o motivo da repulsa pela presença do Olympio Soares - sem tempo para uma resposta imediata, emendei - você sempre me disse gostar das crônicas e da forma como ele escreve seus textos, inclusive afirmando que seus escritos no domingo eram melhores que os gols do Pelé. Realmente - mas o Olympio está muito chato, seus textos estão cada domingo mais iguais. Notoriamente abdiquei a fala do Dario, ao mesmo tempo relembrava das conversas em que ele me confidenciava sobre a influência recebida do Olympio. Paralela a essa afirmativa desconfiava que ali começava surgir um dos seus traços desregrados da sua posterior publicação literária.
Depois daquele evento no hotel, alguns meses mais tarde, o velho Olympio faleceu em Buenos Aires, nesta época ele era um dos jornalistas enviados para cobrir conflitos estudantis na capital argentina. No dia da sua morte, quando o telefonema chegou ao Brasil, estávamos reunidos na redação da A Hora. Nesta altura eu era o editor do caderno cultural e o Dario ensaiava nos confins da cidade os percalços da marginalidade que começava aparecer. Mesmo sendo uma editoria desprezada pela maioria das pessoas que faziam parte do jornal - Dario esbravejava sempre que alguém cogitava participar de alguma pauta policial - ali, era o lugar de onde as evidências podiam ser escritas em pequenos leads. Ao baque do telefonema, falei para o Dario sobre o falecimento do Olympio, muito friamente, ele se limitou a responder - o estado perde, a política mais ainda.
- Vamos tomar um café? Surpreso, compactuei do convite, assim rebatia o frio daquele começo de noite e ainda fumava mais um cigarro, provavelmente o vigésimo do turno.
A morte do Olympio acabou deixando a imprensa local órfã de uma pauta criteriosa no campo político. Nos bate-papos a consternação era imensa, mesmo o A Hora sendo um concorrente dos jornais para que o Olympio publicava, todos nós, jovens acabávamos influenciados e admiradores dele.. Nesta altura a força da redação estava centrada no comprometimento de jovens universitários em contato com o antigo jornalismo, já desgastado.
Naquele tempo as redações começaram a padecer perante aos censores, que ali começavam a se estabelecer. Aos poucos os potenciais jornalistas foram desvencilhados - alguns por medo, outros por intensa ousadia.
Minha última conversa com alguns colegas de redação e inclusive com o próprio Dario foi em julho de 60. Passando por uma livraria no centro, vi aquele sujeito com um sobretudo marrom, a coluna arqueada, a qual ele sempre se queixou de dor, denunciava, era o Dario. Com um livro do Salinger nas mãos, ao ser chamado, ele sorriu resumidamente. Conversamos sobre muitas brevetudes - futebol, política, inclusive o seu problema hereditário de coluna - a vida é assim, certas dores, são mais que uma visão crítica da cidade, me disse com seu tom autoral de sempre. Ele ainda perguntou como estavam os andamentos da cobertura policial. Disse que após a sua saída da editoria, já tinham passados inúmeros rapazes, mas o interesse de universitários estava cada vez mais escasso. Ousei afirmar que a culpa era da intervenção militar - neste momento Dario me espiou de forma salingeriana e disse: o som de duas mãos não pode ser necessariamente o do cumprimento, sim o do atrito com as paredes.
Após este encontro, nunca mais tive oportunidade para um contato mais próximo com o meu companheiro de juventude jornalística. Os outros colegas dos tempos de redação do A Hora se tornaram em grande parte, produtores de arte - infelizmente em um país que começava a ficar cada vez mais vigiado pela ditadura militar. Em agosto de 64, precisei sair do estado via Foz do Iguaçu, após quase dez horas dentro de um ônibus lotado de pessoas, todas com o semblante de desespero, embarcamos para uma suporta liberdade em países, principalmente europeus.
De longe, eu recebia notícias semanais dos bravos amigos que continuaram produzindo sobre as amarras da censura que cercavam o A Hora. Estas notícias era a vida que eu tinha e gostaria de não ter. Por uma correspondência endereçada ao edifício de quarto, sala e cozinha em Sevilha na Espanha, desabei perante a leitura da carta - dois grandes amigos, tinham sido levados de suas casas e foram achados mortos quase duas semanas depois do desaparecimento. Foi a primeira vez que senti minhas lágrimas serem mais pesadas que qualquer extensão de sentimentos. Como poderiam assassinar dois promissores artistas do país - me indagava em desespero. Mesmo acreditando que somente a obra fica, e isso, já estaria eternizado. Naquela mesma tarde resolvi ir até um dos diversos cinemas de rua na parte menos frequentada por turistas na cidade espanhola. Dentro da sala, apenas o projetor, um casal de namorados e todas minhas lembranças.
Hoje ao escutar o noticiário, soube do lançamento do novo livro do Dario. É mais um dentro de sua imensa carreira literária. Outro dia, em conversa com alunos em uma universidade, durante um evento da semana de comunicação, falei dos episódios do jornalismo universitário, com envolvimento de uma juventude que ousava fazer algo melhor dentro do Brasil. Uma aluna disse que leu certa vez, que a herança do Olympio, jamais foi seguida dentro do jornalismo universitário - por um momento, me peguei pensando de forma como nunca havia dentro da minha vivência octogenária. Seria mesmo uma das inovações que deixamos para o jornalismo - foi a minha resposta aos alunos ali presentes.
Ainda dentro do complexo universitário, deparei-me com um cartaz do Governo Federal, nas fotos dos desaparecidos políticos, nele estava impressa a do Dario, minha vontade foi ligar no mesmo momento para o 0800 e dizer umas boas, confirmando o erro. Afinal ele estava vivo e produzindo como nunca. Sutilmente, lembrei da última conversa em 60, naquela resposta ruidosa dele - voltei para casa com o sentimento herdado do discurso da época ditatorial - ame-o ou deixe-o, neste caso, fiquei com a segunda opção.