domingo, 27 de junho de 2010

As filhas da mãe


Para ele escrever sempre foi mais que um esforçado e criativo verbo. Começou despertando todos os vizinhos dos andares acima e abaixo do seu apartamento. O tac-tac dos seus anulares nas desgastadas teclas da máquina exalavam enredos cáusticos. Ao lado da máquina na mesa dispunha lateralmente as folhas branquíssimas uma sobre as outras. Colocava gravata e usava uma calça extremamente alinhada. Desde a mocidade sempre quis ser escritor, porem como a disciplina é ausente para a criatividade – ficou apenas com a disciplina. Traduzia milhares de páginas mensalmente – certas vezes abria um sorriso jocoso ao se sentir como o criador de Gregor Sansa – quando no final de uma manhã assinou com letra borrada – Kafka/II/VII. Andou até a janela e acendeu um cigarro, anteriormente chegou a fumar a cada nova lauda digitada – porém com o tempo diminuiu o ritmo graças às reclamações da esposa.

Fechado no escritório não percebia a vida, escutava apenas os ruídos vindos de fora. Neste passo não reconhecia o crescimento das filhas – Laura e Julia. Nesta época elas corriam pelo apartamento todo e, sabiam como ninguém despertar a ira do pai – que quando acompanhado não conseguia traduzir uma palavra sequer. Ficava restrito ao ridículo de perceber o extravasamento de vida delas. Tinha a sensação de que ser escritor é ser sozinho, um sujeito de alma grande apenas nas páginas e ativista de causas esquerdas. Seria tudo fácil se pudesse voltar para frente da mesa e encarar as teclas da máquina.

O fascínio provocado pelas traduções escritas ao longo da carreira era amedrontado pelo despertar das suas filhas. Ainda recentemente alternavam rodopios no útero materno, agora já estatelavam os olhinhos nas atividades deste ser aqui – homem, escritor, pai – a ordem precisava ser assim – pensava triunfante.

Compenetrado no trabalho era possuído por uma das traduções de Wilde – “hoje tenho de manter o Amor em meu coração, senão como vou ser capaz de viver este dia”. A intimidade com De Profundis o despertava para as coisas não feitas pela família. Lembrou uma breve discussão com a esposa – Quando você se apega ao trabalho e o dinheiro acaba morrendo por fora. A verdade custava laudas desperdiçadas no toc-toc na máquina. Qualquer homem metódico pensaria na injustiça cometida por Elis, mas naquela situação fraquejou e precisou se retirar do escritório. Não conseguiu – não seria o trabalho responsável pela fissura familiar. A descoberta o fez voltar ao trabalho – puxou uma nova folha e começou a escrever sua própria história – jogou o restante das folhas no chão, afrouxou o nó da gravata, descalçou os sapatos. As obsessões eram batidas nas teclas – ninguém pode me obrigar a escrever o que querem ler, jamais serei um Shakespeare – sentenciou. Deixou a coluna solta e com a cabeça solta começou a pensar em seu primeiro romance. A concentração foi abruptamente interrompida pelo toc-toc na porta. Ao abrir encontrou Laura de pijama com listras rosa e branco. Com um olhar desconhecido ela o encarou e foi puxando-o pelas mãos, sem dizer nada. Todos deveriam dormir naquele momento, inclusive a filha que o levava apegado as suas mãos. Chegando no quarto das filhas, olhou para a Julia após o apontamento do anular de Laura – ela dormia abraçado a um livro. Ao lado da cama, junto com alguns bichos de pelúcia estava uma folha de caderno com uma caligrafia desproporcional, típicas de crianças alfabetizadas há pouco tempo. Acompanhado da filha ele começou a sentir desconforto de estar sozinho, sem o acompanhamento da lata de lixo para amassar mais uma lauda. Deitou Laura na cama e arrumou a gola do seu pijama. Ali começou verdadeiramente sua melhor tradução – dormiu vestido socialmente.

domingo, 6 de junho de 2010

Ping- pong


Cena I

- Como consegue chegar tarde?

- Não sei.

- Nova moda?

- Pode ser.

- Copa do mundo.

- México.

- Enlouqueceu?

- Não.

- Parece.

- Estranho.



Cena II

- Estava vendo o jogo?

- Sim.

- Com todos seus amigos divorciados?

- Alguns adúlteros.

- Vergonhoso.

- Não.

- Como?

- Nada.

- Estranho.

- Cada dia mais.



Cena III

- Amor.

- É.

- Não seja irônico!

- Claro.

- Vamos dormir?

- Quem sabe.

- Você não muda.

- Aprendi.

- Com quem?

- Vamos dormir.