terça-feira, 30 de dezembro de 2008

OS

Tocavam a campainha do apartamento ao lado, sempre no começo de tarde. O azul da tarde invadia a sala e calmamente junto ao silêncio sentenciavam o peso vespertino. Abraçada a sua solidão pegava recortes de coleção de revistas de moda de invernos passados. Todas as modelos muito bem vestidas, bonitas como fossem incólumes ao tempo. Urgentemente se perguntou em que estação estava, a preocupação lhe doeu os ossos, por um momento ficou com remorso de estar restrita ao verão. As folhas secas desta estação eram sobras da primavera que adoeceu no mesmo sentido do seu coração. Sentia falta de todos os momentos que restavam da sua ultima saudade adormecida. Em sonhos não despertados pelo inescrupuloso despertador ela tinha duvidas em falar sobre certas coisas. Entre todas suas opressões mais expostas estava o receio de falar a respeito do amor. Acreditava que todos os modelos de amor, quando posicionados em escalas evolutivas de contagem, perdem o sentido para as banalidades de outros ângulos míopes da vida. Ficou com medo de voltar a falar de amor, pelo menos nesta tarde. Sentia remorso de ficar sempre com lembranças que a aturdiam e depois permaneciam em sua cabeça como fossem partes de sua família. O cachorro do apartamento ao lado estava sozinho, aliás, sempre ficara sozinho durante as tardes, seus donos saiam para cuidar das suas vidas profissionais - ele não parava de latir quando escutava a campainha tocar. A campainha tocar é um sonido propagado por alguém que chegou. Muitas vezes me sinto como um cachorro trancado dentro de um apartamento, não que eu tenha vergonha de latir, mas eu divago, penso em prosa e viajo na poesia do sentimento. Quem saiu, não voltou mais, deixou apenas um maço de cigarros e um cartão amassado do natal de 88 – Seja como for, seja sempre amor, seja sempre você, amor, amor meu – estava impresso em letra cursiva. Ler isso é agredir minha alma, porém como sou duas, agrido a alma e purifico o corpo. Volto a relembrar quando eu lhe perguntei certa vez umas duvidas sobre o que sentira na época – Você me ama o suficiente para sentir que ama de verdade para sempre? O sinto na minha frente dizendo com os lábios quase encostando um no outro – Certamente a amo, mais que possas imaginar e menos que possas sentir – falado isto, punha-se a sorrir, um sorriso que seduzia mais que qualquer outra coisa no mundo. Nestas horas eu me punha de pé, jogava as costas para trás, admirava meus seios e dizia olhando para ele – Viver apenas uma vez com você não basta – os sorrisos dos dois abriam dois mundos de amores conjugados de sinceridade.
Tais palavras rasgavam a sua doce garganta e feriam fonemas que alucinados estavam por não poderem dizer um nome. Terrivelmente os sentimentos não dormem dentro de mim, me acordam toda madrugada por volta das 3 horas da manhã. Mesmo acordada sinto a recordação de mãos dadas com os sentimentos lá próximas daqueles retratos empoeirados e bonitos. O que mais me incomoda todos os dias ao acordar em casa, é que neste apartamento sou obrigada a domesticar todos meus anseios e conviver com meus desejos. Quando estou no trabalho, volta e meia sempre estou com a cabeça naqueles dizeres do cartão, principalmente em sua parte final – seja sempre você, amor, amor meu. Estranho que mesmo quando estou com alguém diferente, não que seja implicância ou comparação minha, mas não o tiro da cabeça, os versos crescem e já formam um mosaico de frases e sentimentos tão bem guardados aqui dentro de mim. Entusiasmada com o momento vespertino e azul da tarde exclamou – vivemos para o agora e para as lembranças – sorriu, como fizesse questão de pedir desculpas por nascer e morrer nos sentimentos. Resolveu fumar e a cada trago voltava a pensar mais em tudo o que mais lhe assolava e consolava. A campainha do apartamento ao lado continuava sempre a tocar durante as tardes.


segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Senhor, seu troco.



A praça Zacarias sempre foi o lugar do centro da cidade que mais gostei de ficar. Ali é legal, têm o chafariz, a Lancaster, a Marechal e um prédio com 25 andares o edifício Acácia. Os dias de calor eram divertidos, usava o chafariz para mergulhar, brincar com a água expelida pelos arcanjos. A noite dividia a marquise das Pernambucanas com mais alguns amigos, todos nós usávamos papelões oferecidos por um dos guardiões da loja. Sujeito impar, além de não nos maltratar, arrumava o material de nosso dormitório e nos protegia. Pela manhã gostava de subir até a praça Carlos Gomes e perambular por todos os bares do entorno, pedindo dinheiro as pessoas. Sair a caça de moedas pela manhã sempre é mais fácil, as pessoas com pressa de chegar ao trabalho, mal tem tempo de questionar para qual finalidade é o dinheiro. Simplesmente enfiam a mão no bolso e despejam em minha mão. Já tive sorte de pegar cinco reais, uma nota bem amassada é verdade, provavelmente doada sem querer. Situações como esta são raras, normalmente precisamos beijar as pontas dos balcões das lanchonetes e encarar o corpo dos homens para pedir uma moedinha. – Tio me arruma um trocadinho? Tio me arruma um trocadinho? Quantos vezes a pergunta repetiu-se e nenhuma reação foi diagnosticada. Quando não arruma-se moedas, se conversa com outros amigos e nos viramos na tentativa de inventar a vida. Depois desmaiamos encostados na moldura que circunda o chafariz da praça, ali ficamos expostos a deriva do tempo. Perdidos em nossos pensamentos descobrimos o quanto a inocência não tem sentido quando ela é preparada em plásticos coloridos. Não temos muito tempo para continuar a deriva do tempo, precisamos voltar a pedir, mas pedir é tão indelicado, as pessoas tem medo de nos olhar, agredimos com nosso semblante pérfido de valores, por mais que saibamos diferenciar as coisas. Em uma manhã de junho a chuva caia forte, batia nos ladrilhos da calçada e rebatiam sobre nós e nosso papelões. Era perto das sete horas da manhã, olhei para Castorzinho e pensei, a gente poderia levantar daqui e ir até a panificadora do Português que ficava distante quatro quadras da marquise da Pernambucanas. Resolvi não falar nada, afinal, entre convidar mais um e ter que dividir um pão, preferi ir sozinho. Chegando a panificadora ela encontrava-se com algumas pessoas dentro, fiquei encostado na porta na logo na entrada e ali fazia o cartão de visita:

- Senhor, você me arruma um trocado?
Fazer a pergunta na entrada é sempre mais fácil, afinal já sabia se receberia alguma moeda ou não. Muitos que passaram por ali deixaram um trocado do troco. Consegui somar moedas e tinha dinheiro suficiente para tomar um café preto bem quente e comer um pão com manteiga na chapa. Neste tempo em que estive na porta da panificadora do Português, Castorzinho que logo após a minha saída também levantou-se e perambulou pela praça atrás de algo que pudesse sustentar o vazio que a vida naquele instante estava. Foi pelo caminho mais fácil, em uma distração do dono da banca de revistas pegou 70 reais e fugiu em direção a panificadora. Quando chegou estava atônito e quase sem conseguir falar, me disse:

- Toma! E saiu em disparada.

A sua camiseta branca com a impressão de uma escola municipal estava com as costas toda marcada de água suja, resultado da velocidade dos seus calcanhares sobre as pedras da calçada molhada. Não tive tempo de ver o que era, muito menos de saber quanto de dinheiro tinha ali. Antes mesmo de eu me sentar em uma das cadeiras de pernas compridas e com assentos revestidos de espuma coberta com courino bordo, chegou o seu Rogério e dois policiais.

- É esse ai?
- Esse aqui mesmo?
- É.

Venha vagabundo.

Depois desta manhã tudo mudou. Não preciso mais sair cedo e pedir moedas na saída da Lancaster, confeitaria dos bacanas, ou ainda, ir até a Panificadora do Português. Tenho café da manhã, almoço, lanche da tarde e jantar. Porém troquei a praça, o chafariz e seus arcanjos por um quadrado cercado de 2x2 em que divido com outros 8 meninos. Aqui somos tratados como fosse a tradução de como as pessoas pensam em nos chamar na rua, porém, grande parte delas não chama. Aqui tudo tem horário, mas muitas vezes somos acordados no meio da noite por um funcionário, que diz com voz embriagada: - Qual de vocês vai ter o privilégio de sair da companhia dos outros? A gente nunca sabe quem é, mas afirmo, que neste caso ser, não é nada bom.
Quando o funcionário não me escolhe para sair por algumas horas daquele espaço cinza 2x2 eu consigo fechar os olhos e reconstruo a Praça Zacarias, o seu entorno e até a banca de revistas do seu Rogério, local em que muitas vezes eu ainda com os cabelos desgrenhados e olhos nublados do sol matutino tentava ler as primeiras páginas dos jornais pendurados e fixos por grampos de roupa, estes iguais aos que as donas de casa usam no dia-a-dia. Aquilo que eu não conseguia entender perguntava aos transeuntes, mas grande parte das vezes continuava a não entender.
O momento que mais lembro da praça, dos trocos dos senhores no centro da cidade é quando os meus olhos fechados não conseguem suportar as lágrimas que o transpõem. Isto sempre acontece quando escuto música clássica, cigarro e ofegância. Muitas vezes perco a conta de quantos cigarros tem no cinzeiro e quantas vezes a mesma música clássica ecoou. Tudo culpa destes plantões longos, intermináveis, eternidades de uma tarde.
Certo dia ao ser novamente o escolhido para acompanhar o funcionário antes de começarmos mais uma atividade percebi que a sala de paredes brancas e uma mesinha de madeira com duas cadeiras pretas também tinha uma mesa improvisada no canto esquerdo, ali percebi que tinham uma garrafa térmica e um pacote igual aos da padaria do Portuga.

- Você não me arrumava uma xícara de café preto e um pão com manteiga.
- O que? Vai se foder, porra!

Mal tive tempo de retrucar algo, já sentia aquela esbaforida de cigarro romper a minha orelha direita e escutava uma voz que dizia:

- Você quer café? Está de brincadeira comigo.

Depositado naquela situação sempre falava:

– Senhor, seu troco.